A rapariga do café

Lembras-te da rapariga daquele café pequeno que tu achavas muito bonita, morreu, ontem, matou-se, enforcou-se. Foi encontrada enforcada num… numa… não sei, já não me lembro qual era a árvore, pormenor sem importância nenhuma. Isto dito assim, sem rede e sem explicação. Nem eu procurei uma. Fiquei calado e não comentei. Mas a imagem, que afinal não vi, não me sai da cabeça. Não vale a pena perguntar o que leva alguém ao suicídio. A explicação está na própria forma como se aceita o que aconteceu como tendo acontecido. A vida continua. Para os que cá ficam. De uma maneira ou de outra. Continua sempre. Com mais ou menos entradas ou saídas, caminhos, recantos, encruzilhadas. Não sabia nada da rapariga do café. Nunca soube nada. Nunca sabemos nada. Enfeitamos a nossa ignorância com sorrisos de encanto sem sabermos que o encanto já pode ter-se perdido. Não sei se às vezes não há regresso. Mas isto dito assim. Sem explicação. E até o meu silêncio. Não será tudo isto cúmplice da morte que se avizinha. Que se senta a nosso lado, em silêncio. Que diz vem. Que reconforta pela ilusão breve que oferece. Tudo é fugaz como um sorriso de criança. Envelhecimento precoce. Tempo desastroso. Luzes cinzentas, quase apagadas. Não sabias nada da rapariga bonita. Nunca soubeste. O que olhas nunca é o que vês, o que vês nunca é o que olhas. O sentido. Qualquer coisa que se encontra só quando já não se sabe recuperar. Terá planeado tudo, a rapariga bonita? Terá feito de conta que sim, terá feito de conta que não. Talvez se tenha despedido sem dar a entender que se despedia. É muito perigoso deixar indícios quando se dá o último passo, quando se encena o último gesto, quando se abre a última porta. Mas nós rapidamente a fechamos. Se não era dos nossos aos seus pertence. Que temos que ver com isso? Relatamos o que aconteceu, registamos, pensamos um pouco talvez, estremecemos, e arquivamos porque temos medo. Até quando se ama se arquiva, mas aí não adianta, porque o recalcado regressa sempre, é como a verdade, que morre à superfície depois de ter tocado o mar profundo, naufragado memórias, inventado sonhos, e sabe-se lá que mais. Quanto de nós se perde naquilo que somos? A rapariga bonita. Já nem me lembro bem dela. Agora não a voltarei a ver. Ninguém a voltará a ver. Ou apenas quem a não pode esquecer. Pode ser que haja alguém que a não possa esquecer. Não sei que amores deixou. Que vida era essa que terminou debaixo de uma árvore. Corda ao pescoço. Mas não me lembro que árvore era. Pormenor sem a mínima importância. Nunca soubeste nada. Não te esqueças nunca disso. Que nunca se sabe de nada. E que só o amor nos pode redimir. Mesmo onde o frio toca a noite e a luz se apaga. Não sei.

4 comments:

Anonymous said...

jctp,

Não consigo ouvir a música que puseste.

Queira ouvir.

:)

Rita

jctp said...

Já lá está outra versão.

De qualquer forma, se quiseres ouvir a que lá estava é só instalares esta coisa e ires a este site.

Anonymous said...

Já está.

Obrigada.

Rita

ana said...

ainda hoje gostava que me dissessem que tinha sido mentira, que o rapaz tinha ido apenas de férias, nos tinha pregado a todos uma partida.

que a minha ultima conversa com ele não tinha sido pior que tonta. que eu tinha até sido um peso a favor de estar vivo, um peso pequeno, porque os outros, nestas horas, imagino e não sei, são um peso pequeno.

de vez em quando sonho com ele e com a mãe dele e com todos os outros amigos dele. e não sei como é que o amor pode redimir quando ele, que nós amavamos de uma certa tola e infantil maneira, incompleta, escolheu não estar.