Alice IV

Alice, que sei eu de ti? Que sabemos nós uns dos outros? Se somos estranhos a sós connosco próprios. De nós próprios desconhecidos. Que posso, afinal, eu saber? Que pode o criador saber da criatura? Se é que fui eu quem te criou. Se não és afinal tu quem me cria nestas poucas e vagas linhas que escrevo e onde imagino percorrer o teu corpo, tocar a tua alma. Que sei eu, Alice? Que sei eu dos recônditos mais secretos do teu ser? Que posso eu saber de tudo aquilo que não me dizes porque nem a ti própria o sabes dizer? Que posso eu saber, Alice, senão o pouco que adivinho, que invento, que procuro intuir? Que posso eu saber senão o que de mim em ti encontro, espelho onde revejo aquilo que sou, ou ser imagino? E sabemos tão pouco sobre nós próprios. Somos a sombra do que conseguimos decifrar, o abismo onde se reflecte a luz que dentro de nós queima, alimenta e ilumina a vida, e talvez a apague, um dia, sem querer, sem ser possível evitar o ocaso prometido. É por dentro disso que vivemos. É por dentro de nós que somos o pouco que vamos sabendo ser. A vida nem outra coisa é, senão esses passos incertos no nevoeiro que nos protege e esconde, revela e dissolve, projecta e castra, cria e evapora. O ser é apenas a aparência de tudo o que existe. Não somos o céu que nos cativa nem a terra que nos prende. Somos alguma coisa de intermédio revelada pelo intervalo entre a aparência e a ilusão. A concretude abstracta do vazio. A abstracção concreta do pleno. O voo raso do pássaro solitário, à procura de ninho. Que sabemos nós, Alice? Que sabemos do pouco que somos e do tanto que nos ultrapassa? Sabemos apenas isso. Que estamos incertos no tempo. Ancorados no espaço. Perdidos na soma dos dois. Abrigados pela divisão multiplicadora do seu desencontro. Tenho vontade de rir, Alice. Faz-me cócegas pensar. O homem pensa, Deus ri, diz um velho provérbio. E sempre erradamente tendemos a pensar que o pensamento é inútil, que é um devaneio supérfluo que se perde na indiferença do riso divino. Quando pensar é afinal a nossa forma de rir. Tal como esse riso cósmico que criou tudo o que existe é o pensamento a pensar-se a si próprio. Deus é um filósofo que nunca soube ao certo o que fazia. Igual a nós. Vadio dos mares e das estrelas e dos caminhos improváveis do amor e da imaginação. O seu riso ecoa no nosso pensar como o nosso pensamento se dissolve no seu riso. Tu és a minha filha muito amada, em ti pus toda a minha alegria, pensa-me até ao limite do pensável, e sorri-me.

1 comment:

Anonymous said...

Estou a sorrir-te, e a abraçar-te e a beijar-te, para que não te sintas tão só.
Vês a minha sombra? Sentes a minha pele sobre a tua pele?
Respiremos juntos, já que estamos perdidos no riso há tanto tempo!