Alice I

I
Chove. Mas é dentro de mim que chove. Na hesitação da constância dos dias. Na indiferença instável da repetição. Doem-me os olhos de pensar. Prefiro ouvir o cantar sibilino dos pássaros. Esquecer o desassossego que me abala, embala. Abrir as mãos e aceitar. Quero lá saber da doçura dos dias. Não são histórias de encantar o que procuro. Cansa-me a insensatez do herói. Procuro outros caminhos aquém do calvário. Não quero esse grito que me persegue. Escrever não tem valor nenhum. É como pintar uma parede, apertar um parafuso, coser uma meia. Deixa o mundo um pouco menos perdido. Nada mais do que isso. Ou cria essa ilusão. A tinta há-de desbotar, o parafuso voltará a ficar largo e as meias rasgar-se-ão com o uso. A leitura não sarará a ferida. Escrevemos como quem lança palavras ao vento. Ninguém sabe que coisa quer. Acabamos por nos habituar a tudo. Devíamos enlouquecer de vez em quando. Com direito a internamento e tudo. Um caso perdido. Degenerescência pura. Agora há químicos que põem tudo no lugar. Articulam o que outros desarticularam. A vida é um sorriso breve. Talvez já tenha dentes podres. Há tanto que anda por cá - Mas não deveria dizer podres, tem uma cáries. Agora queremos tudo bonito. Mimado. Lindo. Qualquer coisa nos serve desde que seja colorida e alimente a nossa inglória desgraça, leia-se falta de graça. Falo dos segredos de deus (assim mesmo com letra pequena, para ser mais igual a nós), não da pequenez anã dos gigantes. Um dia acabarei de vez. Porei fim ao fantasma inarticulado que me guia os passos. Nada há a esperar para além de nós. Não regressaremos a nenhum perdido paraíso. Perdidos somos nós e os passos que damos. É no jogo dos espelhos que se encontra a luz. Um reflexo do calor. Nada mais. Aquecer-me para não morrer de frio. Como um arco-íris que não sabe se nasceu para ver a chuva ou o brilho do sol. E não entende que nasceu do profundo amor que impede que o choro e o riso se separem. Parecem habitar mundos diferente, mas só são felizes em pemanente eclipse. Como o sol e a lua. Mas aqui há outras fantasias. Iluminadas por espelhos que acariciam. Quebrar em caso de emergência. A porta fecha por dentro e ninguém já sabe como é que se sai. Mesmo que estejamos todos enganados e já vivamos no lado de fora. Nem um palavrão, Alice. A partir de hoje, é proibido. Foda-se, deves estar a brincar comigo, caralho. Não sei se devo rir ou chorar. Fazes-me cócegas transcedentais. O que é que isto quer dizer? Sei lá. Falo por falar, da mesma forma que escrevo. São labirinticos percursos do ser. Dá um ar filosófico à coisa. Também ninguém vai ler isto. Tanto faz. As calamidades repetem-se na certeza da tragédia. Aqui uma mão, ali um pé. Às vezes é o que chega para fazer um cadáver. Já se inventaram fabricas que viviam da morte. Parece que davam gtrandes lucros. Espalharam-se tripas por superfícies ensanguentadas. Parece que o diabo (assim com letra pequena para ser menos diferente de nós) gosta do cheiro da putrefacção. Outros imaginaram que o deveriam oferecer em dádiva. Tudo no mundo te pertence, Senhor. Que é o homem, para que percas o teu tempo? Tens mais que fazer, não é verdade? Tratar um pouco de ti. Bem que andas precisado. O culto da imundície não te tem feito bem. Arrastam-se aos teus pés, Senhor, os pobres que dizes amar. Mas eu sei que é só ódio, que é tudo só ódio, que não há nada mais senão ódio. Mas não o deveria dizer. Silencia sempre a verdade. Pode ser que não sejas apanhado. Se te apanham crucificam. Os vermes reclamam alimento. Os cadáveres são mais saborosos depois de muito sofrimento. O sangue torna-se agridoce. Escusas de lamber os beiços. Eu sei que tu gostas. Todos nós gostamos. De gritar em êxtase contra as madrugadas frias. Sou também isto que escrevo. E isto não é grande coisa. Nada vale o que parece e nada parece o que vale. Há sempre um intervalo entre o que as coisas são e o que aparentam ser. A verdade revela-se nos interstícios da ilusão. A lâmina caiu ao chão. Ainda sem sangue. O que estavas a fazer? Ias cortar os pulsos? Não, não ia. E também essa lâmina não presta. Ainda era capaz de me magoar com a brincadeira. Estava só a ver até onde conseguia chegar. E não iria tão longe. O hospital é aqui perto e o cemitério fica do outro lado da rua. Isto será uma arma branca? Assim, junto ao pescoço de alguém, faria o sangue esguichar. Sorriso vermelho. Mas a prisão também não fica longe. O mundo anda muito concentrado. Já não há ilhas desertas. Os selvagems habitam entre nós. Esqueceram os espaços originais, a música desarticulada, a possessiva invocação dos mortos. Um dia eu serei chama. Arderei como o fogo que me queima. Verás rasgos de luz no céu. O regresso afinal estava para breve e não o sabíamos. Esta geração não passará sem que o filho do homem rasgye o horizonte do céu. Cada maluco com a sua mania. Mas cantaremos canções em Abril. Num sonho muito vago de uma revolução inexistente. Respiraremos no âmago casto das flores de Maio. Morrerão sem desendência, mas a ninguém negarão o seu perfume. Amorosas filhas de outra esperança. Não sei contar as histórias que ficaram por contar. Só reinvento as que herdei. As que os sepulcros inviolados não sabiam devolver. Aqui não haverá ressurreição, mas o calor baço do amor. O calor baço do amor.

II
Alice, escrever é a mais difícil das artes. Não há outra mais perversa, mais tensa, mais reveladora. Não há outra mais falsa e mais fantasmagórica. Escrever é sempre uma promessa de esperança. Uma porta aberta ao desejo. Um sorriso a adormecer junto a corpos apaziguados. Escrever é estar a caminho entre o que se perdeu e o que se conquista. Escrever é a maior das verdades. Escrever é a maior das ilusões. Alice, falhei todas as artes para manter apenas esta. Para me iluminar de palavras. Falhei a fantasia teatral. Falhei o delírio cinematagráfico. Falhei a imaginação pictórica. Falhei o desassossego fotográfico. Falhei a luz musical. Falhei todos os passos da dança. Falhei todas as artes. Para menter apenas esta. Aquela que de mim sabe. Onde sou mais do que eu. Onde venço o mundo quando perco. Onde me encontro sempre sem nunca me encontrar. Alice, as frustrações alimentam o meu amor. Não o meu ódio. Criam pontes secretas entre as palavras e eu. Molham-me os lábios. Agitam-me o coração. Revitalizam-me todos os músculos. Concentram o sangue. Erguem o tempo. É aqui que me encontro. Na suave textura das palavras. Na sua rudeza. No seu sabor. Somos feitos de palavras, Alice. Elas são a seiva da vida. São elas que marcam o teu amor e glorificam a tua frágil presença no mundo. São elas que te recompõesm quando tudo parece perdido. Melhor que as palavras, Alice, só o silêncio. Esse que as trai e as revela. Ao mesmo tempo.

III
Há mais segredos assim. Resguardados a medo da incompreensão. Mas de nada vale. Somos aquilo que somos. Não tenho sequer convicção a escrever. Deixo o texto fluir. Penso a intervalos. Devia viver assim. Mas talvez esta escrita seja afinal produto da minha dificuldade de viver. Se fosse fácil respirar, não escrevia. Tremem-me as mãos. Tremem-me sempre. Não leves a mal. Não é por tua causa. É o frio que está dentro de mim. O calor da hesitação. Sou mau a negociar. Faço as coisas por defeito. Escolho caminhos enviesados, talvez para não escolher caminho nenhum. Que importa tudo isto. Palavras vazias atiradas a um ecrã de computador e pouco mais. É tempo de parar. O cansaço acaba por nos dominar. Como o rio que nunca desagua e habitua-se a ficar por lá. Não sei se estás aí, Alice. Nunca o soube. Nem sequer escrevi para o saber. Não sei porque escrevo. E prefiro assim. Há uma pureza maior em não saber. Em ser como o vento que passa. Escrevo palavras que magoam. Escrevo palavras que sangram. Nem eu sei bem porquê. Talvez precise desta espécie de fantasmagoria para me apreender um pouco melhor. Ou me perder ainda mais. Ou de não sair de onde sempre estive, que é o que mais faço na vida, desperdiçando-a. Claro que há a esperança do eco das palavras nos olhos de quem as lê. Como poderia não haver? Mas sou tão pornográfico, Alice. E isso assusta-me. Desagrada-me. Dou-me a Tanatos e deixo Eros fugir. Na rigidez obscena das imagens naturais. É a morte que dança perante os nossos olhos. Num jogo de trevas que não nos poderá curar. O erotismo perde-se, como a vida que deixamos para trás. E só sobram os corpos que são armas, gritos que fingem prazer, e sangue que escorre de mortes alheias. Ando-me a enganar, Alice. E também o engano cansa. Preciso de outra esperança que me ensine a viver. De beijos azuis em tardes de mel. O riso pode ser um gesto contrafeito. Tudo parece menos do que aquilo que é. E talvez seja. Não cortaremos os pulsos, Alice. Não é tempo para isso. O sangue não é nada. Não vale a pena irmos por aí. O reino do sangue é como o reino do esperma. Onde os homens se vêm muito apressados para rostos prostituidos de mulheres alheias. Tudo por um bom espectáculo visual. Fechamos tão pouco os olhos.

IV
Há vícios que nos entram na carne. Instalam-se confortavelmente no nosso cérebro. Como o sorriso de um Deus muito velho que perdeu a memória. Somos os escravos da merda que criamos. Gostamos de chafurdar na nossa própria miséria. Em vez de nos levantarmos do divã e subirmos a montanha. Onde o ar que se respira é mais puro. Sem vestígios doentios do sangue e do esperma e da transmissão geneticamente culturalizada e socialmente transmissível na familiaridade dos rostos pornográficos. Mas há sonhos para além de sonhos. Vida para além de vida. Há alguma coisa que nos justifica e nos redime. Não há, Alice? Não o farás mais. Não escreverás contra ti próprio. Sequer sobre. Ou sim, mas além do que restringes. Criar multimplicidade. És aquilo que dás. Não precisas ter medo. Escrever é uma arte maior. Não é o murmúrio infinito de um lamento. Inventarás vida, sonhos, esperanças, desejos. Libertarás o choro e o riso na certeza da palavra transmitida. Ela é que vale. Aquilo que se segreda ao ouvido. E que alimenta as metamorfoses do amor. O sangue não é nada. O esperma nada é. Apenas sintomas onde se instala o reino do poder. Tu és do meu sangue, tu não és do meu sangue. Sou eu o portador do esperma que te criou. Fui eu que guardei o fantasma perdido do jorro quente. E o sangue une-nos a todos na grande sinfonia familiar. Mas que importa tudo isto. O importante é o que se descobre, não o que se encontra. As palavras que cortam velhos mitos e se rasgam na esperança de novas vidas. Não cortaremos os pulsos. E não perguntarás se eu existo. Claro que existo. Se tu existes como poderia eu não existir. Mesmo que me dissolva como castelos de crianças inventados à beira mar. Sou essa multiplicidade em que me perco. Essas vidas que se misturam numa vida maior. O sangue não é nada. O esperma nada é. A pornografia que nos rodeia é apenas a realidade a gozar consigo própria. Daí a vertigem com que nos engana. Mas é a verdade que rasga e salva. Aquela que se procura para além das evidências e do ritmo certo da ausência de prazer.

V
Mas há um lugar onde a esperança mora. Onde o caminho para o paraíso é já o paraíso. Onde o ser ilumina o tempo e o tempo redime a eternidade. Há um lugar onde começar e acabar é sempre já e ainda estár a caminho. Há um lugar onde o tempo é reencontrado à sombra de sonhos em flor. Onde a prisioneira se confude com a fugitiva. Onde os meus lábios tocam os teus. Diz-me, ao menos, que as palavras que escrevo valem um beijo teu ou o lento rasgar dos teus lábios num sorriso.

VI
Fecha os olhos, Alice. E eu digo-te versos imemoriais. Eu digo-te o céu e a terra. Eu digo-te o oceano e os rios. Eu digo-te as montanhas e os vales. Eu digo-te a morte e a vida. Eu digo-te o choro e o riso. Fecha os olhos, Alice. Eu conto-te segredos que nunca contei a ninguém. Eu digo-te da dor e do sofrimento. Eu digo-te da esperança e da loucura. Eu digo-te da solidão e do medo. Eu digo-te do sonho e da utopia. Eu digo-te tudo o que nunca ouviste em palavras que nunca mais esquecerás. Eu digo-te o amor.

6 comments:

laura said...

poderás apagar todas as tuas palabras. mas não poderás apagar as tuas palavras que os outros guardam. beijos

Anonymous said...

Já não grito mais que estás errado!

Agora grito que já não grito mais.

Faz o que quiseres...

...

Podia ser diferente, sei que podia ser diferente.

...

Vou-me embora, abraço-te e vou-me embora.

...

Sentes o meu calor?

Sentes a minha dor?

Sentes a minha alma?

Para lá do corpo, muito para lá do corpo...

...

Vou-me embora: porque não me pedes para ficar?

Pede-me para ficar!

...

Suaves lábios os teus em que pousei o meu/teu derradeiro beijo... de hoje.

Rita

Anonymous said...

Fecha os olhos, Alice. E eu digo-te versos imemoriais. Eu digo-te o céu e a terra. Eu digo-te o oceano e os rios. Eu digo-te as montanhas e os vales. Eu digo-te a morte e a vida. Eu digo-te o choro e o riso. Fecha os olhos, Alice. Eu conto-te segredos que nunca contei a ninguém. Eu digo-te da dor e do sofrimento. Eu digo-te da esperança e da loucura. Eu digo-te da solidão e do medo. Eu digo-te do sonho e da utopia. Eu digo-te tudo o que nunca ouviste em palavras que nunca mais esquecerás. Eu digo-te o amor.

Faz de conta que eu sou a Alice, diz então... (peço-te de olhos fechados e com um sorriso rasgado nos lábios)

Rita

Anonymous said...

Fecha os olhos, Alice. E eu digo-te versos imemoriais. Eu digo-te o céu e a terra. Eu digo-te o oceano e os rios. Eu digo-te as montanhas e os vales. Eu digo-te a morte e a vida. Eu digo-te o choro e o riso. Fecha os olhos, Alice. Eu conto-te segredos que nunca contei a ninguém. Eu digo-te da dor e do sofrimento. Eu digo-te da esperança e da loucura. Eu digo-te da solidão e do medo. Eu digo-te do sonho e da utopia. Eu digo-te tudo o que nunca ouviste em palavras que nunca mais esquecerás. Eu digo-te o amor.

Faz de conta que eu sou a Alice, diz então... (peço-te de olhos fechados e com um sorriso rasgado nos lábios)

Rita

Anonymous said...

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Anonymous said...

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