O senhor Gautama


Foi debaixo de um limoeiro que o senhor Gautama alcançou a iluminação. Não sem que antes lhe tivesse caído um limão em cima da cabeça. Quando o limão caiu em cima da cabeça do senhor Gautama, ele sentiu como era amarga a vida. E mais convencido ficou quando decidiu provar o limão. Não que tenha desgostado. Era difícil ao senhor Gautama dizer, sem margem para dúvidas nem hesitações, se o sabor do limão era totalmente desagradável. Havia uma amargura qualquer, que ao principio se notava levemente, depois parecia atenuar-se, talvez o gosto se começasse a habituar ao sabor do limão, mas depois ficava sempre alguma coisa, um rasto de tristeza, um sabor meio ácido, meio amargo, que levava tempo a passar, e quando passava, pouco deixava em seu lugar, chegando mesmo o senhor Gautama a sentir saudade do estado anterior, apesar de ligeiramente desagradável, e este lhe parecer mesmo preferível do que o vazio que ficava e parecia ainda mais amargo do que a amargura desgostosa do limão. O senhor Gautama, depois de ter provado o sabor do limão, ficou indeciso. Não sabia se tinha ou não gostado. O limão amargava. Mas essa amargura tinha o seu quê de doce e de agradável. E o senhor Gautama estava a pensar se deveria comer outro limão ou se pelo contrário nunca mais deveria nem sequer lhes tocar. Isto que eu sinto, pensava para consigo o senhor Gautama, chama-se desejo, ou desejos, talvez também se possa dizer no plural, e se eu não tivesse comido o limão, talvez não me tivesse deixado dominar pelas suas contradições, mas se eu não tivesse desejado o limão não o teria comido. O desejo é um alimento do desejo. O desejo é sempre insaciável. E cá estou eu, Gautama, o pobre e fraco Gautama, debaixo de um limoeiro, agarrado ao sabor de outro limão, preso no labirinto do desejo. E tudo porque um limão me caiu em cima da cabeça. Embora se pensarmos bem, a culpa até foi minha. Quem me mandou a mim vir sentar-me debaixo de um limoeiro. No fundo, foram os meus actos que fizeram com que o limão caísse, com que a minha cabeça fosse atingida, com que o desejo se desencadeasse e com que eu ficasse com uma insuportável dor de barriga. Mas de que me queixo eu. Coisas bem piores têm acontecido e continuarão a acontecer. Tudo é sofrimento e destino e desejo. E por vezes penso que o melhor de mim ficou ali, debaixo daquele limoeiro onde perdi a inocência.

Cruzamento

Tenho as linhas da tua vida na palma da minha mão. Há um momento qualquer em que as nossas vidas se cruzam e as linhas se confundem.

I'm in love with a pop-star




Se eu ainda fosse suficientemente jovem para me apaixonar por uma pop-star (ou até para ler um livro chamado I’m in love with a pop-star), suponho que me apaixonaria pela Alanis Morissette. Mas o que é que a Alanis tem que as outras não tenham? Ou, hipótese também possível, o que é que ela não tem que as outras tenham? Em primeiro lugar, e se estamos a falar de pop, o que quer que isso seja, as letras das canções fazem sentido, o que já não é pouca coisa. Além disso, a Alanis é bonita. Quero dizer, parece humana, feita de carne e osso, e não de um qualquer material sintético, que de humano nem a aparência tem. É possível que as soft-porn-pop-stars alimentem os sonhos eróticos de alguns homens. É mesmo possível que alimentem os sonhos eróticos de todos os homens. Talvez o maior desejo sexual dos homens seja uma boneca insuflável, com vida, e com um mínimo de inteligência tão pequeno que nem se note. E nessa medida, as soft-porn-pop-stars adequam-se mais ao padrão do que a Alanis. Além de que as letras das músicas, se são músicas, que as soft-porn-pop-stars cantam são mais simples e mais lineares. Basicamente dizem que elas são podres de boas e não há quem não as queira foder. Como quem diz que um homem que se preze não pode ver uma boneca insuflável que não fique logo com tesão. E talvez seja verdade. Ou seja, talvez todas estas soft-porn-pop-stars pudessem ter uma excelente carreira na pornografia. O que não se percebe é porque é que estão na música. A não ser que seja por um falso moralismo beato, o mesmo que terá inspirado o like a virgin da rainha da pop, que lhes leva a pensar que apesar de tudo o mundo da música é mais respeitável que o mundo do porno. As porn-stars são uma espécie de prostitutas de luxo com clientes mais ou menos fixos. Mas têm tanto de actrizes como as soft-porn-pop-stars tem de músicas. Isto não significa que a Alanis não pudesse fazer porno. Até porque no hardcore tudo o que mexe é comestível. Significa apenas que as soft-porn-pop-stars não deveriam fazer música. Deviam limitar-se àquilo que sabem fazer. Se é que o sabem. Mas isto não há nada como tentar. Vão ver que até gostam. E fazem-nos o imenso favor de deixar a música para quem a merece.

Post Zen

Nunca escrevi nenhum post antes deste.

Escrito na parede

As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Aquelas que fazem parar. Que fazem pensar. Sorrir, às vezes. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Como sinais de fumo no meio da confusão. Como rasto de inteligência perdida entre a barbárie dos graffitis e das infantis declarações de amor. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Aquelas que tiram o ar. Que alimentam a revolta. Ou o sarcasmo, ao menos. Ou a ironia, se mais possível não for. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Na sua invisibilidade luminosa. No seu silêncio gritante. No seu excesso moderado. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Que ficam na memória. Que já não sabemos esquecer. Que lembramos, ao menos, de vez em quando. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. O voto é uma arma, se a usas ficas desarmado. Os nossos sonhos não cabem no tamanho das urnas. Nem submissas nem emancipadas, violentas e descontroladas. A maior arma do opressor é a cabeça do oprimido. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. No meio do Amo-te Cátia ou do Fuch the police, escrito assim, tal como está aqui, suponho que por mau domínio do inglês, mas podia ser também pudor, boa educação vinda de quem menos se espera, fuch em vez de fuck. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. No meio dos símbolos de uma revolta inconsequente, se revolta é e não apenas primitivo instinto de adolescências perdidas. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Como quem resiste. Ainda. Apesar de tudo. Como quem insiste. E existe.