Não consigo escrever, pensou ela


Não consigo escrever, pensou ela. Faltam-me as palavras, as ideias, os gestos. Faltam-me as certezas. As imponderadas convicções. A inexplicável fé. Não consigo escrever, pensou ela. Arrasto palavras, iludo sentidos, brinco com metáforas frágeis e inconsistentes. Não consigo escrever, pensou ela. Enquanto observava a aranha, que no tecto do quarto, com indelével precisão, construía a sua teia. Ainda pensou levantar-se para a matar e destruir a armadilha fatal a que essa mosca nocturna e importuna que insistia em incomodá-la não iria provavelmente escapar. Mas deixou-se ficar. Sentada na cama. Caneta erguida na mão direita, suspensa no ar, caderno aberto sobre as pernas. Escreve à mão ainda sempre que pode. Mas agora não consegue. Não pode. Não sabe. Não consigo escrever, disse ela. Disse e não apenas pensou. Articulou levemente com os lábios as palavras pensadas. Não consigo escrever. Não diz não sabe, não quer, não pode. Diz apenas isso que é o que acontece agora e que é a única coisa que importa. O verdadeiro problema a resolver. Não consigo escrever. E pensa nesses tempos outros em que seria fácil arranjar desculpas e justificações para a sua momentânea paralisia escritiva. As mulheres não escrevem. As mulheres não pintam. As mulheres não pensam. As mulheres não falam. As mulheres não sonham sequer. Antes alimentam os sonhos dos verdadeiros detentores da faculdade de sonhar. De falar. De pensar. De pintar. De escrever. Não consigo escrever, pensou ela. E talvez no fim de contas fosse mais fácil nesses tempos outros. Mesmo assinando com nome masculino. Porque os homens, esses sim, podem escrever, e pintar, e pensar, e falar, e sonhar, e viver, e amar, e dominar, e controlar, e silenciar, e até matar. Não consigo escrever, pensava ela. Tendo deixado o corpo cair sobre a cama, o caderno escorregado para o chão, a caneta ainda segura na mão direita, suspensa no ar. Como uma arma.

7 comments:

Rita said...

Saudades dos teus textos, jctp!

Continuas a não te conformar com o papel social que te foi atribuído? Fica-te bem!

Pode ser que, um dia, em vez de uma arma possa ser uma caneta mesmo, quem sabe?

Beijo.

:)

Anonymous said...

Não consigo escrever, pensou ela. Faltam-me as palavras, as ideias, os gestos. Faltam-me as certezas. As certezas. São elas que me faltam. Agarrar na fé, na réstia de fé e esperar. Mas ela não sabe esperar. A espera sempre lhe doeu tanto como a falta de certezas.Caneta erguida na mão direita, suspensa no ar, caderno aberto sobre as pernas. Escreve à mão ainda sempre que pode. Mas agora não consegue. Não pode. Não sabe. Sentiu no outro dia, um dia qualquer, que engoliu as palavras só para não sentir o sabor a sangue sempre que as mordia. Ás palavras. Enchem-lhe o peito agora. O peito que quase rebenta. E ela que só as queria dar, como um beijo. Como um beijo demorado, molhado, sedutor. Carregadas de amor são as palavras. As que engoliu só para não sentir a lâmina no peito, de todas as vezes que as dizia e do outro lado recebia a pior de todas as palavras, o "silêncio".Não consigo escrever. Não diz não sabe, não quer, não pode. Diz apenas isso que é o que acontece agora e que é a única coisa que importa. Não consegue e o corpo enche-se de nada. Um vazio que vai ocupando cada vez mais espaço. Tendo deixado o corpo cair sobre a cama, o caderno escorregado para o chão, a caneta ainda segura na mão direita, suspensa no ar. Como uma arma.

Alba said...

Relato inquietante da produção de escrita. Como através dos "black-outs" de discurso criativo questionamos tanto sobre nós. E tudo pomos em causa, até a liberdade "pós moderna". Até as nossas pulsões mais obscuras.

laura said...

as mulheres (não) escrevem. os pássaros (não) morrem. os homens (não) amam.

Rita said...

jctp,

Senhor, por quem sois, mas porque nos deixais nesta angústia de não mais lermos as vossas sábias e belas palavras? ;)

Alba said...

Ah, Rita, o JCTP ainda está mais preguiçoso para postar do que eu! Olha, vamos brincando nós enquanto ele não volta, boa? Queres sugerir aí um temazito? (E assim animamos um bocadito mais esta caixa de comentários e o blog e tal).

Rita said...

Alba,

Vamos lá, então...

Sugiro que falemos sobre porque é tão bom (eu pelo menos assim o acho) trocar estas e outras palavras com alguns seres humanos, aqui, na blogosfera.

Se preferires, sugere tu um tema. :)