Do amor e de outras redenções

Como é que o amor redime? Ninguém sabe como é que o amor redime, porque ninguém sabe o que é o amor. É como se o amor não existisse. Um pouco como Deus não existe. Nem a alma. O que existe é o sexo, o mundo e o corpo. O resto não tem existência real. E é por isso que é o mais valioso. O nosso tempo, tal como já não é muito dado a acreditar em Deus, também não é muito dado a acreditar na alma. E a quem perde Deus, resta apenas o mundo, tal como a quem perde a alma, resta apenas o corpo. Vivemos hoje para o mundo e para o corpo sem perceber, a não ser em raros momentos de lucidez, que esse mundo já não tem sentido e esse corpo já não tem valor. Nada se joga quando é apenas ao nível do mundo e do corpo que se joga. A verdade e o amor são duas coisas de cuja existência por vezes duvidamos com a mesma força com a qual não conseguimos duvidar do mundo e do corpo. As coisas são o que são e servem para o que servem, dizemos, como se soubéssemos alguma coisa do que as coisas são ou para que é que as coisas servem. Temos respostas, normalmente respostas de bolso, portáteis e simples, para questões que nem sequer colocamos. O essencial de nós próprios está nesse vazio que somos, mas não queremos ser, e na forma como ele se resolve no seu encontro com o mundo, que mais não é do que a palavra de um Deus oculto, tal como o corpo mais não é do que a expressão de uma alma invisível. Sei que escrever coisas como estas, Deus oculto e alma invisível, nestes tempos de relativismo e indiferença, pode soar estranho e mesmo anacrónico. São coisas em que já se acreditou, dizemos, mas em que agora já não se acredita. Ilusão nossa. O Deus oculto não existe para que acreditemos nele, tal como a alma invisível também não existe para que acreditemos nela. De nada adianta acreditar ou não acreditar. O mundo não é apenas o mundo porque se o for não tem sentido e o sentido é-nos essencial e não podemos sequer viver sem ele. E o corpo não é apenas o corpo, porque se o fosse seríamos apenas um objecto, uma coisa, sem valor nenhum, e não o somos, ou ao menos não queremos sê-lo, mesmo quando o somos ou nos querem convencer que o somos ou nós próprios nos convencemos que o somos. Deus é esse sentido e a alma é esse valor. Sem um e outro não podemos existir nem ser verdadeiramente aquilo que somos.

4 comments:

ana said...

ui, estavas a falar do amor e escapaste-te para deus e para a alma. como se ainda assim deus e a alma fossem temas mais fáceis que o amor. ou li-te mal?

Rita said...

Muito bonito este teu texto.

...

É certo, pelo menos para mim, que precisamos necessariamente de um sentido, sentido para a nossa vida. Sem esse sentido, Deus, se quiseres, Amor, para mim, diria também, vivemos no caos.

Sendo certo que ninguém é feliz se não for amado, mais certo é dizer que ninguém é feliz se não amar.

Amar transforma todo o impossível em possível, porque não há força maior do que a do Amor.

É, pois, importante que duvidemos do Amor para que duvidemos também de nós, de quem somos, do que podemos. Agarramo-nos então a coisas sem importância, à imagem de um corpo, por exemplo, e cumprimos magistralmente aquilo que querem de nós.

A dificuldade de sermos quem somos é hoje maior, na medida em que não há uma praxis de pensar, dizer, e fazer O Amor.

Chego à rua e grito: 'Amor'. Chego à rua e grito a palavra desconhecida e sou, então, também eu, desconhecida, inexistente mesmo, estrangeira num lugar qualquer.

...

E tudo isto não é só assim, felizmente, porque há momentos de lucidez, como tu bem o afirmas.

E tudo isto não é só assim, porque há uma palavra-valor ou uma palavra-amor: tolerância, que nos faz perceber a fragilidade do ser humano e o seu direito a errar.

E tudo isto não é só assim, porque também nós, como muitos outros, estamos aqui a dizer isto.

E tudo isto não é só assim, porque eu quero acreditar.

...

Espero ter contribuído para tornar este blog um pouco menos deprimente e decadente e sonho com o dia em que se chame undelete all entries. ;)

Um beijo, de Amar.

Rita.

Isabel said...

Não saberia dizer melhor.

Anonymous said...

Por entre a nostalgia de um cristal primevo assoma o inconformismo de uma alma agitada pela busca de sentidos.

Eu concordo contigo.
Acredito que um dia perceberemos, serenamente, os sentidos ocultos de cada silêncio e o simbolismo de cada estridência solar.

Teremos a Paz, então.
Será como S. Paulo implorou?