Alice III

I
Não sabemos nada, Alice, não sabemos nada sobre o essencial. Somos criaturas tacteantes. Pouco vemos e pouco compreendemos. Pouco sabemos. Pouco somos. Ao menos durante esse breve suspiro que imaginamos ser a nossa vida e que vai do nascimento à morte, o que quer que seja, tenha sido ou venha a ser isso a que chamamos nascer viver morrer. O ser lançado no mundo. É isso que somos. Um fósforo rasgado contra as trevas. Uma réstia de luz. Um abrigo para a esperança. É isso que somos. O pouco transformado em muito, transbordante de si, o muito reduzido a nada, o nada reinventado de cinzas. É isso que somos. É isso que sempre fomos e seremos. A respiração de Deus. É talvez isso a vida e nada mais. A respiração de Deus. Somos como o vento que sopra e que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai. Somos o tempo que passa e que regressa sempre. Que estando nunca está e que não estando nunca deixa de estar. Somos frágeis, transitórios e incertos como a memória. Inseguros como a saudade. Misteriosos como a noite. Estranhos como a vida. Somos mãos abertas e estendidas. Somos cabelos soltos. Somos corpos habitados por fantasmas. Somos o que fica do que passa e o que passa do que fica. Somos tudo e não somos nada. somos feitos de luz e de sombra. Somos um equilíbrio de contrários. Uma dialéctica de opostos. Que afinal são o mesmo. Com outro rosto. Outra forma. Outra configuração. Mas tudo parte do mesmo ser. Sem limites definidos. Tocando-se, penetrando-se, fecundando-se. Como o masculino e o feminino. Como o espaço e o tempo. Como o ying e o yang. Como o quente e o frio. Como o pesado e o leve. Como o forte e o fraco. Como a razão e a loucura. Como a vida e a morte. Como a alegria e a tristeza. Como eu. Como tu. Como nós.

II
Alice, para lá do horizonte esconde-se aquilo que os olhos não podem ver, as mãos não alcançam, a mente não imagina. Para lá do horizonte esconde-se o sentido da esperança, o destino da procura, o conhecimento desconhecido. Para lá do horizonte está tudo aquilo que tu és e que eu sou. Para lá do horizonte está o que nos completa. Para lá do horizonte estamos nós. Para lá do horizonte está a verdade da ternura e o silêncio da felicidade. Para lá do horizonte estão os olhos que os olhos não podem ver, as mãos que as mãos não podem tocar, a mente que as mentes não sabem pensar. Para lá do horizonte está tudo o que não existe, o que não tem espaço nem tempo. O que vive dentro de nós e não sabemos. Tudo aquilo a que damos abrigo e nos ultrapassa. Para lá do horizonte desenha-se a história da eternidade. Para lá do horizonte estamos nós.

III
Olha para ti. Sabes o que vês? Vês Buda. Ouvi dizer que era assim. Inventámos tantas vidas para desarranjar o pesadelo. Mas nunca sabemos se despertamos. Sabes que Buda um dia ergueu uma flor? No silêncio do segredo revelado todos esperavam uma palavra. Só Mahakasyapa sorriu. Era o sorriso da esperança. Mas a nós ensinaram-nos o desespero. A puta de religião onde crescemos. Com as suas verdades esterilizadas. Puras como o vazio estéril de Maria. A mãe de um Deus eternizado numa cruz. A nossa pequena cultura da morte e da infelicidade. O peso infernal do passado, da memória, do pecado. Marcado na carne como a origem do mal. E caminhamos abismados por dentro de falsas ilusões. Quando Buda pegar na flor não te esqueças de sorrir. O amor é uma estrada onde aprendemos a tocar o íntimo.

4 comments:

Alba said...

Este texto, nos seus três fragmentos, é um texto luminoso. Talvez permita que Alice sinta o sopro de Deus. Acredite no que existe para lá do horizonte. Ou para lá do arco-íris. Talvez a tua Alice seja uma Dorothy ansiando pelo vendaval que a resgate à cinzentude do seu Kansas. Fazes bem em falar-lhe de possibilidades, afinal, são o oposto do desespero, remember? Kirkgaard dixit, tu citaste...

Rita said...

Suponho que vais gostar do que escrevi hoje.

Buda vai mesmo ter que ficar para outro dia!

Não há Nirvana possível, só mesmo as palavras...

Anonymous said...

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