Diz-me que sou apenas uma pessoa igual às outras

Roger Keith Barrett (1946-2006)

Por favor, não digas que sou um génio. Não digas que sou um diamante louco. Não uses metáforas vazias e inconsistentes. A vida não é isso. A vida nunca foi isso. A vida não pode ser isso. Isso é só uma desculpa. É só uma fantasia. É só um refúgio. É só uma mentira. Não fales da minha importância para isto ou para aquilo. Porque não falas do dia em que te cruzaste comigo quando eu ia comprar o jornal? (faz-me falta sair, sabes? Faz-me falta ver o sol. E às vezes até parece que gosto.) Porque não falas desse dia? Ou de outro qualquer. Os dias têm a importância que lhes damos. A minha vida não foram uns escassos anos dourados e uma morte adiada. A minha vida foi o espaço e o tempo que ocupei no mundo. Estranho que ninguém fale nisso. Que se perca tempo com canções que o tempo apagou. Talvez me façam alguma homenagem. Talvez se fale de um diamante louco que outros inventaram. Não eu. Juro que não sou responsável por isso. Nem sei se apareci nesse estúdio de gravação onde me dizem ter visto. São histórias que se contam. Mas a vida é outra coisa. É feita desta carne, deste sangue, destes ossos, deste respirar e deste medo. Por favor, diz-me que sou uma pessoa normal. Bastante vulgar. Que não tenho nada de especial. Que sou chato e irrelevante. Que tu nem gostas muito de mim. Mas já te habituaste à minha presença. Que não vais chorar na despedida porque não precisas da mentira organizada para fazer de conta que me amas. Porque estás aqui e não recordas os anos perdidos. Porque não me julgas nem avalias. Porque não sabes nada de mim nem procuras saber. Porque eu sou só uma pessoa no mundo como tu. E não precisamos de justificações nem de cantos patéticos e nostálgicos sobre diamantes loucos que nunca existiram. O que importa é estares aqui agora. O resto já me é bastante indiferente. Nada pode vencer a grandeza da tua presença. Mesmo que não digas nada. Vens e estás. E isso é maior do que qualquer palavra. Sempre bastante vãs as palavras. Especialmente nestes momentos em que talvez não haja nada a dizer. Tu trazes-me músicas que aprendi a amar. Lembro-me de Pink Anderson e Floyd Council. Lembro-me do silêncio das noites frias. Lembro-me de Emily e dos jogos de Maio. Mas não é isso que importa, no fim de contas. Estares aqui é mais importante do que tudo isso. Estares aqui é um dia igual aos outros. Estares aqui são duas pessoas vulgares. Diz-me que sou banal. Diz-me que sou apenas uma pessoa igual às outras. E sim, podes sorrir, como a criança de ontem me sorriu quando eu voltava a casa.

Diz-me que me lembras assim. Apenas assim. Diz-me que é esta a imagem que queres guardar de mim. Que é esta que é humana, verdadeira, real. Que todas as outras são fantasias que dispensas. Que não há diamantes loucos, nem génios do passado, nem anos dourados, nem vidas perdidas. Nem vidas perdidas, diz-me. Porque tudo é verdadeiro e grandioso e divino. E não temos que fazer de conta, alimentar a engrenagem, sermos menos nós para outros poderem ser mais do que são. Que importa tudo isso? É tudo falso, longínquo, perdido. “Tu, espera aí, eu conheço-te, tu eras aquele que, aquele que.” Não, estás enganado. Deves me ter confundido. Eu não era aquele que. Eu sou aquele que. Se não entendes isto, não podes entender nada. Se não sabes isto, não podes saber nada. “Mas tu não eras aquele gajo que… Olha que tu a mim não me enganas, tenho uma memória que é um espanto, eu até me lembro de coisas que não vivi, vê lá tu bem. Mas eu conheço-te, pá. Tu eras aquele gajo que…” Mas porque insistes. Já te disse que não era. Eu sou. É assim tão difícil de compreender. Ou talvez prefiras dizer-me que eu vou ser aquele gajo que. E que depois, nessa altura, quando eu for aquele gajo que, tu vens para falar comigo. Mas agora eu sou só o que sou. E isso nunca chega, não é? Andamos sempre à procura de diamantes no meio das pedras. Mas só as pedras existem. Eu sou uma pedra. E tu és uma pedra. Escusas de fazer de conta que me conheces porque eu não sou quem tu imaginas e porque tu insistes em imaginar-me como eu não sou. Não sou eu que não estou aí. És tu que não estás aqui. Escusas de inventar labirintos e almas perdidas. Aquários redondos e peixes afogados. Os passos que dou acompanham a minha respiração. Quando o semáforo mudar de cor atravessarei para o outro lado. Mas posso deixar-te um autógrafo. Assim já podes dizer a toda a gente que conheceste um homem. Não uma estrela. Não um diamante louco. Não um génio. Mas um homem. Apenas um homem. Mas talvez isso seja pouco para ti. Talvez prefiras alimentar histórias e mitologias. Há quem as compre a bom preço. Talvez tenhas sorte. Mas comigo não. Não tenho dinheiro para pagar o preço que me pedes. Tenho só uns trocos no bolso. Para cigarros e jornal. Mas se quiseres podemos beber um café. É já ali. Do outro lado da estrada. É só esperar que o semáforo mude. “Não, deixa lá. Deves ter razão. Eu devo estar enganado. Tu não és quem eu penso. Confundi-te com outra pessoa. Às vezes acontece. Mesmo quando se tem uma memória como a minha. Desculpe, se o incomodei. Boa tarde.”