Do egoísmo e outros demónios

Ainda não percebi se sou egoista ou se vivo demasiado fechado dentro de mim. Talvez as duas coisas sejam formas de egoismo. Porque há egoistas que o são porque não gostam das outras pessoas, e há egoistas que o são porque não gostam suficientemente de si próprios. Creio que estou mais próximo dos últimos. Melhor assim. Sempre posso ter a esperança de vir a gostar um pouco mais de mim, e aprendendo a gostar, ser menos egoista, e gostar ainda mais dos outros.

Da arte de escrever

Mas vou dizer-te qual é o segredo, e não contes a ninguém:
- escreve sempre, sempre, mesmo quando não tiveres papel. Escreve pensando. Escreve na cabeça. Escreve todos os dias. Não aproveites tudo o que escreves. Escreve, escreve, escreve, sem objectivo nenhum. Se queres pensar, escreve. Vicia-te na escrita como na água, na comida, no tabaco.
Depois, vais ouvir a música que tu queres ouvir, porque só tu sabes qual é a tua, a que o teu ouvido quer ouvir.
Sei que não ajudei. Mas é mais ou menos assim.

Isabela

Como um gesto de ternura

Gostava de escrever com música. Que houvesse uma música qualquer nas minhas palavras. Que a folha branca fosse uma pauta na qual disponho as notas, agora palavras. Gostava que quem me lesse ouvisse a música. Uma música suave, longínqua, quase inaudível. Imagino que é isso que procuro quando escrevo. Uma música qualquer que me ajude a continuar. Que me ensine a escolher as palavras certas. Gostava que essa música surgisse devagar, ao ritmo da escrita, na melodia da leitura. Que se instalasse de forma imperceptível. Que diluísse quem escreve, que entrasse no sangue de quem lê. Suave, como um gesto de ternura.

Alice do cabelo aos caracóis


Alice em pequena tinha os cabelos aos caracóis. A mãe penteava-a com persistência. Que cabelo encaracolado é cabelo despenteado. Alice sofria. Gritava. Às vezes chorava. Aquelas manhãs eram uma tortura. Mas a criança havia de ir penteada para a escola. Que isto uma filha é a cara da mãe. E o cabelo da mãe era quase liso. Fora ondulado na infância, mas as ondas acalmaram-se pelo abuso do pente. A mãe da mãe de Alice também se chamava Alice. E nas poucas fotografias que dela havia, Alice nunca a chegou a conhecer, a senhora, mesmo já de idade, tinha ainda um cabelo farto, todo aos caracóis. Alice tinha a quem sair. Saía à outra Alice. A avó que não conheceu. Hoje Alice tem o cabelo apenas ondulado, como a mãe tinha em criança. Os caracóis perderam-se com a infância e Alice hoje só os reencontra em velhas fotografias. Suas e da avó que nunca conheceu.

Virtude

A maior virtude de uma pessoa virtuosa não é ter poucos defeitos, mas saber que tem muitos.

Diferença e repetição

Tudo em mim é imitação, ou pouco mais do que isso. Vou imitando, melhor ou pior, e melhor ou pior imaginando que sou original. E afinal os passos que dou, já por outros foram dados. E as palavras que digo, tantas vezes já foram ouvidas. O que de novo trazemos ao mundo não é tanto isso que imaginamos trazer mas o imaginarmos que alguma coisa de novo trazemos. E afinal até nisso somos iguais a todos os mais, que não sabendo que repetem, fazem outra vez como se a primeira fora.

Stop

Do Partido Socialista


Ilustra a história um encantador episódio entre Mário Soares e Piteira Santos. Aquele teria perguntado a este: "Porque é que você não se inscreve no Partido Socialista?" E Piteira: "Porque sou socialista!"


PORTUGAL PASSA AO LADO
Por Baptista-Bastos
Diário de Notícias, Quarta-Feira, 16 de Maio de 2007.

Espavorido, Marques Mendes fez, há dias, uma alarmada declaração ao País: "O PS está à direita do PSD!" A coisa só pode ser grave e surpreendente para o próprio Marques Mendes, político gentil e, aparentemente, alheado da recente História pátria. O PS sempre alimentou a nossa inocência, comovendo-nos com a incessante litania da esperança. Quando os seus militantes atroavam as ruas, gritando a idílica frase "Partido Socialista, partido marxista!", ignoravam, com idêntico ardor, o exacto significado do que diziam.

Nada disto tem importância. Nunca ninguém se preocupou com os ideais, as doutrinas, os projectos do PS para Portugal. Acaso o PS não tinha nenhum. E, pelos vistos, não o tem. Aquela extasiada história do "partido marxista" foi logo removida do ABC, quando Willy Brandt recomendou a sua rápida submersão. Ávidos de "modernidade", os dirigentes do PS estabeleceram o preceito de que a melhor teoria é não ter teoria alguma.

Ilustra a história um encantador episódio entre Mário Soares e Piteira Santos. Aquele teria perguntado a este: "Porque é que você não se inscreve no Partido Socialista?" E Piteira: "Porque sou socialista!" Na realidade o PS nunca praticou, nem involuntariamente, o socialismo, justificando-se com o "pragmatismo" ou apoiando-se num enigmático "contexto histórico", de que servia de escora a "guerra fria". Os factos induzem-nos a duvidar se alguma vez houve "socialismo", por módico que fosse, em qualquer parte do planeta.

Não foi Sócrates que deu cabo do PS. Foi o PS que deu cabo da ideia que, erradamente, se fazia do PS. Sócrates regressou à "pureza inicial" do partido, como foi enternecedoramente sublinhado no jantar comemorativo da fundação. Mas Sócrates deu, também, cabo do PSD de Mendes; ou, pelo menos, ensarilhou o PSD e entalou Mendes. Este, averiguadamente desconcertado, diz o que não devia dizer e toma atitudes tão ignaras quanto absurdas. O incidente Carmona é outra parcela a juntar à soma de disparates. Ante esta rude gesta, Luís Filipe Menezes, sibilino e doce, por vezes na cintilação de leve sarcasmo, vai tecendo os fios que enredam Mendes numa trama cada vez mais inextricável.

Entretanto, a designação de António Costa para Lisboa ergue a suspeita de que Sócrates quis remover um émulo poderoso. Manigância com antecedentes: lembremo-nos das ciladas a Mário Soares e a Manuel Alegre. Maquiavel advertiu que, em política, não há moral. Sócrates não leu: mas aprendeu de ouvido.

Os limites e as confusões deste aviltamento convidam-nos a concluir que, com cavalheiros de tal porte, tudo se resume a ganhar ou a perder.

Portugal passa ao lado.

Trair

Não há nada mais perigoso do que uma pessoa que não cresceu. A inocência que não se perdeu alimenta a crueldade. As pessoas que não crescem não sabem que não crescem. Toda a sua vida é uma tentativa de esconderem de si próprias essa verdade. Enganam-se a si próprias enganando os outros. E fingem nesse engano uma maturidade que não têm. Preferem o poder ao amor. Submeter os outros ajuda-as a esquecer a sua trágica submissão. Temem a liberdade alheia. Nada os assusta mais do que uma pessoa livre. Escusado será dizer que quando aqui falo de crescimento falo de crescimento interior. Claro que a interioridade se reflecte sempre naquilo a que chamamos a vida exterior. Mas as pessoas que não cresceram investem fora de si tudo o que não têm dentro de si. Precisam de gritar ao mundo que são o que não são. Vivem de aparências e de falsas verdades. O artifício de que vivem é a sua própria morte. Perderam a alma mas não se importam. O que os assustaria verdadeiramente era ter uma. Fogem de si próprios e nessa fuga violenta atropelam os outros. O sofrimento alheio compensa-os. São actores mórbidos da sua própria ruina interior. E vivem matando a vida que perderam.

Salto falhado

I held the blade in trembling hands
Prepared to make it but just then the phone rang
I never had the nerve to make the final cut.
(Roger Waters)

Está na ponte e vai saltar. Mas há alguém que grita. E o grito ecoa pelo espaço vazio. Os carros passam demasiado depressa. Mesmo com velocidade controlada. Circulam por dentro da sua indiferença contida. Ninguém sabe quem é. Está na ponte e vai-se atirar. Imagina-se para onde vai. Para um vazio qualquer. Talvez procure outro mundo e outra vida. Há alguém que grita. Mas o grito perde-se no espaço vazio. Os carros passam demasiado depressa. Só um sorriso o poderia salvar. Mas ela ficou em outro lugar. Talvez espere por ele. E ele não sabe regressar. Alguém grita. Ele volta-se para se agarrar. Antes da queda final. As pessoas regressam a casa. Depois de mais um dia cumprido. A noite cai devagar. Mas ele cairá num ápice. O dia volta amanhã. Mas para ele não haverá regresso. Está na ponte e vai saltar. Há alguém que grita. Como se o tempo ainda pudesse parar. Os carros passam depressa. Mesmo com velocidade controlada. O coração bate a compasso. O sangue ecoa nos pulsos. O rio ficaria vermelho se agora os abrisse. Ouve-se um grito ao longe. Ele regressa devagar. Há um carro da polícia que pára. O senhor não sabe que não pode andar assim na ponte? É que eu ia saltar. Não me venha com desculpas e entre no carro. A polícia leva o homem que não saltou. Houve alguém que gritou. E o grito dissolve-se no ar. Já ninguém o ouve. Há um carro que pára no mesmo lugar de onde ele ia saltar. Isto de ter avarias na ponte é uma chatice e dá direito a multa. Há um grito que ecoa no ar. Mas este conseguimos compreender. Anda com essa merda para frente, minha besta!

Cultura de género

Entre o que os homens querem e o que os homens devem querer há uma diferença difícil de entender. Entre o que as mulheres querem e o que as mulheres devem querer há uma diferença difícil de entender. A este desvio diferencial chamamos cultura. E o resto é o quê?

O nosso maior trauma

Nunca é tarde para se ter uma infância feliz, diz o Jorge Palma numa canção. Valorizamos demais a infância. Transformámo-la numa obsessão. A psicanálise freudiana centrou-nos nela. Hemingway dizia que um escritor deveria ter tido uma infância terrível ou, se a não tivesse tido, deveria inventá-la. Transformámos a infância na mais importante idade das nossas idades. A primordial, a decisiva, a verdadeiramente marcante e traumatizante. Ela tornou-se o lugar de todos os dramas, de todos os medos, de todos os fantasmas. É a ela, dizem-nos, que temos que voltar para resolver os nossos mais profundos traumas que nela em nós se teriam enraizado. A infância tornou-se um lugar perigoso. A criança é um perverso polimorfo, lembrava Freud. A infância era o limbo de onde tínhamos de sair. Um paraíso que escondia um inferno. Um inferno que só ilusoriamente parecia um paraíso. Era lá que tudo acontecia. Era lá que estavamos expostos aos maiores perigos. O reino da inocência tornava-se num cruel mundo de perversões e escorregadias seduções. Édipo espreitava-nos. O desejo incestuoso da mãe ou do pai. O impulso homicida alimentado pelo ciúme familiar. A criança tornou-se um fantasma obscuro, um submundo negro povoado por terrores e perversões. Contraponto doentio da pureza infantil. Insensatos, transformámos a infância no lugar de origem dos nossos mais profundos males. E essa infância que perdemos e que estupidamente entregámos às maquinações nocturnas do mal em silêncio vingou-se de nós. Talvez nenhum trauma realmente profundo, excepto em casos excepcionais, tenha tido origem nessa malfadada infância, mas ao imaginarmos que sim, acabámos por a transformar no nosso maior trauma.

A origem do mal

No caso da rapariga curda, barbaramente assassinada por um bando de criminosos, por se ter apaixonado por um rapaz de outra religião, foi a rapariga que teve que morrer. Das duas, uma. Ou o outro lado é mais humano e civilizado, ou em casos como este é a mulher que deve morrer. Não descartando a primeira, inclino-me mais para a segunda opção. Já no mito cristão da origem do pecado original, Deus, como castigo, submete a mulher ao homem e o homem à natureza, o que acaba por ser uma forma de naturalizar a submissão da mulher ao homem.

A cegueira liberal

A única justificação na luta contra o Estado é a luta contra o poder. Mas o poder que o Estado perde não se evapora.

O fim da cultura

Aqui, no site de notícias do google em português, a ciência tem direito a espaço próprio. A cultura, não. É procurá-la no entretenimento.

Maio, mês de Maria.


Foge comigo, Maria, para longe desta terra.

As incertezas da terceira via

Se neste teste político responderem "Not sure" a todas as perguntas o resultado é: You adhere to the Third Way. The Third Way is a fairly nebulous concept, but it rests on the idea of combining economic efficiency - i.e. a market economy with some intervention - with social responsibility. The focus is emphatically on the community as a whole, and not necessarily equality per se. Adherents of the Third Way range from moderate to conservative in their social views, and have recently been willing to take a "tough" line on a range of social issues.

Maio de 2007


Sarkozy quis "abolir" o Maio de 68, e o Maio de 68 vinga-se nos bairros sociais.

Isolacionismo

Enquanto os jovens destroem os seus próprios bairros, Sarkozy está algures no mediterrâneo no seu iate, a meditar. Será ele mesmo capaz de salvar a pureza da alma francesa?

Direita cruzada

Sarkozy ganhou as eleições em França "democratizando" o discurso da extrema-direita. O resultado nem é muito mau para o Partido Socialista que ainda pode vencer as legislativas. Mas é péssimo para o partido de Le Pen.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

Jean-Marie Le Pen, presidente da Frente Nacional, declarou hoje que conta com a consolidação de seu partido nas eleições legislativas, para fazer oposição a Sarkozy na Assembléia Nacional. "Sarkozy se encontrará frente a frente com as promessas que fez. Tenho certeza de que ele não as manterá", afirmou.

Pensamento único, expressão múltipla.

Não basta perguntar se existe liberdade de expressão. É preciso também perguntar se existe liberdade de pensamento. Uma coisa é dizer que ambas as liberdades estão ligadas, outra acreditar que uma se segue magicamente à outra.

Qualquer coisa

- Então agora são só aforismos?
- Parece que sim.
- E quando é que começas a escrever alguma coisa que se veja?
- Tenho medo da tentação de apagar.
- Não seria a primeira vez.
- Nem a última.
- Então escreve.
- Mas o quê?
- Qualquer coisa.
- E achas que qualquer coisa serve?
- Se não servir, acrescentas mais qualquer coisa e já não ficas só com qualquer coisa.
- E fico com o quê, então?
- Ficas com o que ficares.
- Bom, sempre é melhor do que qualquer coisa.
- Vais ver que até consegues qualquer coisa.

Raça, género e outras ilusões

A diferença na cor da pele é tão irrelevante como o sexo que se tem.

Indiferença

Do que precisamos não é de igualdade de género. É de indiferença de género. O que não impede que a igualdade seja o único caminho para a indiferença. E para a diferença.

A vingança da criatura

Era ateu porque achava que o Deus que tinha criado esta bodega toda não merecia existir.

Rumo ao essencial

A preocupação exacerbada com questões menores é sinal de subdesenvolvimento.

Tudo o que não apagámos

Parece que por dia no mundo se acendem milhões de blogs. Seria também interessante saber quantos por dia são apagados.

Conhecimento

Aquilo que não compreendemos não podemos conhecer. Aquilo que não tentamos compreender não conseguimos conhecer.

Ambiguidades

Diferente é uma daquelas palavras que tanto é usada num sentido positivo como negativo.

Desvios culturais

Inovação e adaptação não são a mesma coisa, embora por vezes seja difícil perceber onde uma já começou ou onde a outra ainda não acabou.

Preconceitos culturais

Dizer que gostos não se discutem é como dizer que preconceitos não se discutem.

Invisibilidade

Os nossos mais terríveis preconceitos culturais são aqueles que não conseguimos ver.

Telhados de vidro quem os não tem?

Numa coisa, ao menos, o PNR tem talvez razão. Se existem partidos comunistas, porque não existirem partidos fascistas?

O comunismo cometeu crimes. O fascismo cometeu crimes. O capitalismo também tem direito ao seu livro negro. Felizmente não existem partidos capitalistas.

Com isto tudo, nem se percebe como é possível continuar a permitir a existência do catolicismo, só para dar um exemplo.

A mensagem

As pessoas que votam no PNR estão a dar um sinal claro ao país: preferem criminosos brancos.

A questão

A questão não é saber se o PNR é ou não um partido fascista. O PNR é um partido fascista. A questão é saber se a constituição deve ou não permitir a existência de partidos fascistas?

Os novos beatos

Parece que lá pelo Brasil, por cá não dei por nada, em jornais e coisas parecidas, que por lá deve haver mais do que por cá, se fala de um suposto elogio que o Papa terá feito de Karl Marx num inacabado livro sobre Jesus, que o teólogo tem vindo a elaborar, e do qual, a parte da obra já realizada vai ser publicada este mês. Não é propriamente um elogio, senão o reconhecimento do valor do trabalho crítico e intelectual do filósofo alemão. Como já alguém disse deste Papa: ele é imensamente contraditório. Sendo essa apenas mais uma das razões que me leva, por vezes, a simpatizar com ele. Ora cai o Carmo e a Trindade, na cabeça de alguns beatos do capitalismo, pelo suposto elogio a Marx, pai do comunismo, e logo responsável por todos os crimes que em seu nome se cometeram. Na cabeça destes beatos também as críticas radicais que o Papa faz ao colonialismo e à destruição de culturas (no sentido antropológico do termo, portanto incluindo aí economia, religião, relações sociais e tudo aquilo que transforma um punhado de homens e mulheres em mundo organizado), não são aceitáveis porque o Papa se esqueceu do terrível papel da Igreja neste processo, e, se o não esqueceu, o que tinha era de pedir desculpa, à boa maneira do seu antecessor, e não atirar pedras, uma vez que tem telhados de vidro. Partindo aqui do pressuposto que criticar é atirar pedras e que há alguém que não tenha telhados de vidro.

Vamos a um exemplo. A declaração infeliz que o Papa fez sobre o Islão, é uma declaração conservadora ou progressista? Eu acho que é progressista. E pouco importa aqui que o Papa pudesse ter dito o mesmo do catolicismo e não o tenha dito. O facto da afirmação ser verdadeira para as duas religiões não impede que o seja para cada uma delas individualmente, e logo, o que o Papa disse do Islão é verdadeiro, embora possa ser apenas uma verdade parcial. Em nome de Deus, ou desta ou daquela religião, perseguiu-se, torturou-se e matou-se, segue-se, dizem os novos beatos, que tudo está errado nessas religiões ou nessas doutrinas. Para se protegerem da crítica, e para esconderem o seu próprio veneno, os novos beatos, decidem fazer aquilo que sempre fizeram, atirar fora o bebé juntamente com a água suja do banho, mas sabemos que o que desejam realmente é atirar fora o bebé e ficar com a água suja, mudando-lhe o nome e o sentido, mas mantendo o essencial, desde que sejam eles a controlar a distribuição colectiva do lixo.

Os católicos que conheço gostam muito uns dos outros e do seu catolicismo, mas não acham muita piada a padres e companhia, incluindo muitas vezes nessa companhia o próprio Papa, que normalmente quase parece um seu ódio de estimação, ódio dissimulado é certo, que os católicos que conheço, são mais ou menos especializados na arte da dissimulação nestes assuntos. Eu penso ou sinto mais ou menos ao contrário. Não tendo grande simpatia pelo catolicismo, os católicos que conheço ajudam-me ainda a ter menos, mas não desgosto de alguma inteligência que por vezes nesse obscuro mundo também se vislumbra, e tenho alguma simpatia intelectual, discordâncias à parte, com este Papa. Certamente o prefiro ao popular e beato, ainda não é, mas está para breve, João Paulo II.

Next level

O capitalismo atrai porque parece um jogo. E a inteligência média não ultrapassa os limites do jogo.

A cultura do dinheiro

Os ricos enriquecem e os pobres empobrecem. Até porque os pobres dão menos importância ao dinheiro.

Depois do sexo (ou antes)

A ideia de que o sexo está ligado à violência é tão errónea como a ideia de que o sexo está ligado à ternura e ao amor. O sexo não está ligado a nada porque o sexo não possui existência autónoma. Não é separável de nós. É a nossa imaginação, ou melhor, o pensamento que nos leva a pensar que sim. Somos nós que estamos ligados à violência e à ternura e ao amor.

Esteticamente correcto

A ética foi lentamente banida e substituída pela estética. As coisas deixaram de ser importantes e tornaram-se apenas interessantes. O bem e o mal tornaram-se relativos e os sistemas de codificação passaram para o belo e o não belo, o que fica ou não bem, o que passa ou não passa. O pensamento comunicacional substituiu o pensamento moral. Na moral o agente está substancialmente implicado, na comunicação está apenas subjectivamente. Tudo é relativo no mundo da estética. E inócuo. Tudo é permitido desde que seja aceite por maiorias mais ou menos silenciosas, mais ou menos anónimas. No mundo da estética tudo é leve e suave. No da ética tudo é pesado. A ética é um esforço de ligar pensamento e acção, a estética pretende a sua separação. No mundo da ética Deus salva Isaac. No mundo da estética Isaac mata Abraão.

Nowhere

Não é no where. É now here.

Ver a política por um canudo

Afinal, este não é um país de doutores. É um país de engenheiros. E como diria o outro, nós precisamos é de electricistas. Talvez não fosse mau ter um em primeiro-ministro. Só para variar.

O embuste

Não percebo todo este alarido em relação à licenciatura de José Sócrates. Afinal, o George W. Bush também não tem um grau acadécimo? (A propósito, o homem é coiso em quê?) E não é por isso que deixa de ser um excelente presidente dos Estados Unidos da América.

Cabeças trocadas

O mundo mudou muito. Definitivamente, o mundo mudou muito. Mas a maioria das cabeças nem se aperceberam dessa mudança. O mundo não mudou nada. Não mudou praticamente nada. As nossas cabeças é que tinham mudado. Demasiado.

Ele precisava tanto de escrever como de apagar o que escrevia. (Pedro Paixão)

Liberalismo à portuguesa

A luta contra o Estado em Portugal é trágica. De certa forma, Portugal é um país sem Estado, porque o cidadão não se sente Estado, daí que lutando contra o Estado não se sinta a lutar contra si próprio. Pior ainda, dada a realidade do país, lutando contra o Estado não está a lutar contra si próprio.

O país de Salazar

A vitória de Salazar no concurso de televisão sobre Os Grandes Portugueses - se é que tal expressão tem sentido, uma vez que é quase impossível ser-se grande num país tão pequeno como Portugal, e não me refiro à dimensão geográfica - não é estranha nem surpreendente. O Portugal de hoje não é afinal assim tão diferente do Portugal de ontem, e parece-me que tende a piorar, uma vez que iremos continuar a sentir os efeitos colaterais do país que estamos a construir. O pensamento não é valorizado, e se ontem era violentamente reprimido, hoje é subtilmente anestesiado. A repressão política directa foi afinal substituída pela repressão económica directa. E o que é a economia e o mercado senão, em si mesmos, um projecto político, ou a aplicação prática de um projecto político? Ontem não se falava com medo da prisão, hoje não se fala com medo do desemprego, pensar nunca se pensou, porque o pensamento nunca foi valorizado, não o era ontem e não o é hoje. Portugal sempre foi um país virado para a prática, mas para uma prática sem teoria, e portanto sem grandeza, a inteligência que aqui ajudou a triunfar sempre foi uma inteligência minimalista, bruta, primária. Uma apreensão directa da realidade que equivale afinal a um viver ignorante e mesquinho. Perdeu-se a aposta da educação, disse Leonor Pinhão, no pouco que vi do final do programa. E as palavras são exactas. Cada vez mais aquilo que se defende e pratica é uma educação técnica, básica, directa, prática. Defende-se a submissão das Universidades e outros centros de cultura e saber, e logo de verdadeiro progresso, à lógica curta e imediatista do mercado e do mundo empresarial e financeiro. Só o que importa é o dinheiro, o resto é paisagem. Ora dá-se o caso de o resto ser apenas o essencial. A vitória de Salazar é afinal igualmente, ainda que muitos tenham imaginado o contrário, a vitória do país em que vivemos e do país que insistimos em alimentar. Não foi tanto uma vitória da saudade, quanto uma vitória do reconhecimento. Não se entende ao certo se quem votou em Salazar votou como forma de protestar contra esta democracia à portuguesa em que vivemos, hipótese plausível se tivermos em conta que o segundo lugar foi ocupado por Álvaro Cunhal, ou se foi apenas um voto de confusão entre o Portugal de Salazar e o Portugal de hoje. O país está entregue a técnicos e engenheiros e outros especialistas em pensamento minimalista; obcecado com preocupações orçamentais; o elogio beato do trabalho regressou, alimentado pelo emprego precário e pela ameaça de desemprego; a cultura não é muita, e não sendo quase nunca valorizada, é quase sempre desvalorizada; Fátima, o fado e o futebol não foram propriamente ultrapassados, senão amplificados por novos consumos, igualmente primários, mesquinhos e estupidificantes. O país continua assim. O país parece querer continuar assim. Portugal provavelmente não terá futuro. Não é nem nunca será um grande país. Talvez não precisasse de ser tão pequeno.

A razão do vencedor ou aviso à esquerda

O que importa compreender não é como foi que a esquerda perdeu, mas como foi que a direita ganhou.

A experiência impossível

Se a experiência é tudo porque é que o meu cão não aprende a falar por mais que eu o ensine?

Recomeçar

- Então este blog acabou?
- Não sei. Parece que sim. Mas ainda cá está.
- Podias sempre apagá-lo. Como fizeste aos outros, lembras-te? Ou já perdeste o jeito?
- Não seria muito lógico apagar um blog que se chama "tudo o que não apaguei".
- É verdade. Mas a morada é "delete this blog and all entries".
- Mas agora já não preciso de apagar blogs.
- Porque é que apagaste os outros?
- Não sei ao certo. Talvez quisesse nascer de novo.
- Não é na blogosfera que se nasce de novo, suponho. E mesmo que aqui nascesses de novo seria sempre um nascimento virtual. Isto não é o mundo real.
- Não, pois não. Se calhar foi por isso que apaguei os outros blogs. Porque começava a confundir o virtual com o real.
- Deve ser uma forma qualquer de loucura essa confusão.
- Sim, deve ser. E achas que há cura?
- Há sempre cura para quem se quer curar.
- Nem sempre.
- Quase sempre.
- Há males que não têm cura.
- Não há mal que sempre dure, ouvi eu sempre dizer.
- Nem bem que nunca acabe.
- As coisas são o que são.
- Estamos bonitos! Não achas esta conversa um pouco tola?
- A culpa é tua.
- Porquê?
- Porque eu não existo.
- E eu existo?
- Até prova em contrário, parece que sim.

Abstenção

O problema não é a forma nem o conteúdo das perguntas, nem a natureza do problema em questão. O problema é que a democracia semi-directa em Portugal não funciona. Num referendo, de uma forma ou de outra, acabam por estar em causa ideias e acaba-se, melhor ou pior, a discutir ideias, muitas vezes transversais às clivagens políticas tradicionais. Os processos eleitorais clássicos, em que vários partidos se digladiam entre si, estão muito mais próximos da grande paixão do nosso povo, o futebol. Os portugueses não têm propriamente partido, têm clube, daí ser tão difícil em Portugal alguém mudar o sentido do seu voto, a não ser que valores mais altos se levantem, o que no fundo não é muito diferente do jogador X que jogava no clube Y, mas agora joga no clube Z porque este lhe paga melhor. Além do mais o actual marqueting político substituiu, com sucesso, a discussão de ideias pelo mero confronto de clichés, que acabam por não estar muito longe dos incentivos futebolísticos: “Força Benfica!” e outras variantes. Acresce a isto que se os portugueses já fazem o esforço, e não é esforço pequeno, de eleger representantes de partidos políticos para o Parlamento e para a governação do país, é para que estes decidam por eles o que se deve ou não fazer, e não para que venham com ideias surreais como esta de permitir que sejam os próprios eleitores a decidir e a escolher livremente o que deve ou não ser feito. Cada macaco no seu galho e se os portugueses não se dedicaram à politica não lhes deve ser exigido que de vez em quando sejam políticos. A política é para os políticos, eles que decidam que os eleitores cá estão para criticar qualquer que seja a decisão, mas sermos nós a decidir, era só o que faltava!

Têm por isso razão os que dizem que a abstenção neste referendo sobre o desmancho, tradição bem enraizada neste país de brandos costumes, se deve, entre outros motivos, ao facto dos eleitores considerarem que o assunto deveria ser resolvido pelos políticos no Parlamento. Afinal foi para isso mesmo que foram eleitos. Lá decidir que clube deve ou não estar representado no Parlamento, ainda vá, agora sermos nós próprios políticos, isso já é outra conversa, assim nem valia à pena ter Parlamento. A democracia em que vivemos, para quem não sabe, designa-se democracia representativa, ou seja, os eleitos são eleitos para representar os eleitores, para pensar por eles, questionar por eles, decidir por eles, governar por eles. E isso até agora os portugueses sempre têm conseguido. Três referendos com resultados não vinculativos é mais do que prova suficiente de que estes delírios de democracia semi-directa não funcionam em Portugal. É verdade que quem ouve um português falar pode ficar com a ideia de que se fosse ele a mandar, maneira que os portugueses têm de designar a governação, os problemas eram todos resolvidos e não havia cá abusos e desleixos, mas essa é só uma maneira de falar. Quem não nos conhecer, que nos compre.

O Fim da Utopia

Do you begin to see then, what kind of world we are creating? It is the exact opposite of the stupid hedonistic Utopias that the old reformers imagined. A world of fear and treachery and torment, a world of trampling and being trampled upon, a world which will grow not less but more merciless as it refines itself.

(George Orwell, Nineteen Eighty-Four)

Antropologia das religiões

Católicos e Católicos

Alice IV

Alice, que sei eu de ti? Que sabemos nós uns dos outros? Se somos estranhos a sós connosco próprios. De nós próprios desconhecidos. Que posso, afinal, eu saber? Que pode o criador saber da criatura? Se é que fui eu quem te criou. Se não és afinal tu quem me cria nestas poucas e vagas linhas que escrevo e onde imagino percorrer o teu corpo, tocar a tua alma. Que sei eu, Alice? Que sei eu dos recônditos mais secretos do teu ser? Que posso eu saber de tudo aquilo que não me dizes porque nem a ti própria o sabes dizer? Que posso eu saber, Alice, senão o pouco que adivinho, que invento, que procuro intuir? Que posso eu saber senão o que de mim em ti encontro, espelho onde revejo aquilo que sou, ou ser imagino? E sabemos tão pouco sobre nós próprios. Somos a sombra do que conseguimos decifrar, o abismo onde se reflecte a luz que dentro de nós queima, alimenta e ilumina a vida, e talvez a apague, um dia, sem querer, sem ser possível evitar o ocaso prometido. É por dentro disso que vivemos. É por dentro de nós que somos o pouco que vamos sabendo ser. A vida nem outra coisa é, senão esses passos incertos no nevoeiro que nos protege e esconde, revela e dissolve, projecta e castra, cria e evapora. O ser é apenas a aparência de tudo o que existe. Não somos o céu que nos cativa nem a terra que nos prende. Somos alguma coisa de intermédio revelada pelo intervalo entre a aparência e a ilusão. A concretude abstracta do vazio. A abstracção concreta do pleno. O voo raso do pássaro solitário, à procura de ninho. Que sabemos nós, Alice? Que sabemos do pouco que somos e do tanto que nos ultrapassa? Sabemos apenas isso. Que estamos incertos no tempo. Ancorados no espaço. Perdidos na soma dos dois. Abrigados pela divisão multiplicadora do seu desencontro. Tenho vontade de rir, Alice. Faz-me cócegas pensar. O homem pensa, Deus ri, diz um velho provérbio. E sempre erradamente tendemos a pensar que o pensamento é inútil, que é um devaneio supérfluo que se perde na indiferença do riso divino. Quando pensar é afinal a nossa forma de rir. Tal como esse riso cósmico que criou tudo o que existe é o pensamento a pensar-se a si próprio. Deus é um filósofo que nunca soube ao certo o que fazia. Igual a nós. Vadio dos mares e das estrelas e dos caminhos improváveis do amor e da imaginação. O seu riso ecoa no nosso pensar como o nosso pensamento se dissolve no seu riso. Tu és a minha filha muito amada, em ti pus toda a minha alegria, pensa-me até ao limite do pensável, e sorri-me.

O bairro nos teus olhos


I
O meu nome é Alice. Nasci num bairro periférico e abandonado. Social, era o nome que lhe davam. É nele que vivo ainda. Estou a começar um curso superior que não sei para que me vai servir e gasto os últimos tostões de um subsídio de desemprego que está a acabar. Depois não sei o que farei. Provavelmente desistirei do curso ou deixarei a meio o que talvez não valha a pena concluir. A vida por aqui é sempre igual. Este bairro não vem no mapa, menos ainda em qualquer guia turístico. Dele só se fala quando alguém por aqui perde as estribeiras e se deixa levar pela violência surda que por aqui constantemente se ouve. O mais das vezes o bairro não existe. Ou existe apenas para os que nele vivem. Não é que eu desgoste disto. Não me entendam mal. Sinto-me segura e protegida neste bairro. Por estúpido que isso pareça. Foi o lugar onde nasci e onde cresci.

II
Isto já foi melhor do que é agora. Quando ainda não havia esta gente de outras cores, de outras raças, de outras terras. Não é que eu seja racista. Mas não é preciso muito para ver que são eles que dão má fama ao bairro. Eu até tenho amigos de outras raças. Mas esses portam-se bem. Fossem todos como eles e o bairro seria uma maravilha. É verdade que há pessoas boas e más em todo o lado. Mas antes o bairro não era assim. E só havia pessoas da nossa cor, da nossa raça e da nossa terra. Pode ser que uma coisa não tenha nada a ver com a outra. Mas parece-me difícil acreditar. Talvez seja da idade. Os jovens têm outra visão. São mais abertos, liberais, tolerantes. E por isso deixam estragar o que levou tanto tempo a construir. Dizem que o futuro é deles, que a eles pertence. Que futuro venha a ser esse é que eu não sei.

III
A vida não devia ser assim. Mas é. E não parece que haja nada a fazer. É aguentar e esperar pela pancada. E a pancada acaba sempre por chegar. Mais tarde ou mais cedo. Se não formos nós a fazer por nós ninguém fará. Tenho uma reforma que mal me chega ao fim do mês. O que me vale é que a minha mulher tem outra. Ainda mais baixa que a minha, é verdade, mas sempre é uma ajuda. Faço uns biscates, de vez em quando, que nem sempre há. O meu mal é não vender essas coisas que há por aí quem venda. Bom negócio esse, ao que parece. E que dá para acumular com outro tipo de ajudas. Eu sei que tu sabes o que eu sei que tu sabes que eu não sei. Faz de conta que não viste nada. Se perguntarem, eu nego tudo. Porque haveria eu de confessar? Tomais-me por parvo? Há por aí tanta gente que faz o mesmo. Isto é um produto. Apenas isso. Um produto. E pelos vistos há quem goste e há quem queira. E temos que respeitar o consumidor. E alimentar o consumo. E o trabalho que isso dá. Induzir novos hábitos, atrair novos clientes, fidelizar os antigos. O que vale é que com o tempo eles vão ficando menos exigentes. Já não ligam à qualidade do produto nem discutem o preço. Melhor assim. Morrem jovens, alguns. E isso é um bocado chato. São clientes que se perdem. Mas há sempre malta nova que quer entrar. Há sempre malta à porta.

IV
Se eu não fosse maluco contava-vos uma história. E se vossas excelências não soubessem que eu sou maluco talvez até acreditassem nela. Eu nasci neste bairro vai para mais de não sei quantos anos, que os malucos não são lá muito bons a fazer contas. Vivo numa casa degradada, mas não me queixo. Não preciso de muito mais. Eu a mim tanto me faz. Já estou por tudo. Se quiserem assim, eu faço assim. Se preferem assado, também se arranja. A malta aqui já me conhece e trata-me mal. Mas a mim isso pouco me importa. Desde que não me dêem pontapés, podem-me chamar tudo. Agora com a idade até estou a ficar meio surdo. Logo digam o que disserem, esse é o lado para o qual durmo melhor. Mas normalmente durmo de barriga para cima. E fico a olhar para o tecto. Olhos abertos, noite dentro. Quem me visse assim imaginaria que penso em alguma coisa. Mas garanto-vos que não penso em nada. Ou melhor, penso. Penso que se morresse ninguém daria por nada e poucos lamentariam. Talvez as crianças do bairro sentissem a minha falta. Depois seria como ir ao circo e não ver o palhaço. Mas se eu não fosse maluco, eu contava-vos uma história. E depois vossas excelências fariam o favor de acreditar nela. Ou não?

V
Eu qualquer dia pego mas é numa mão cheia de tinta e dou uma de mão nesta merda. Isto assim como está não tem ponta por onde se lhe pegue. E pensar que a maior parte da malta que vive neste bairro trabalha nas obras. Em casa de ferreiro, espeto de pau, como se costuma dizer. Se quem devia fazer, não faz, porque não o havemos nós de o fazer? Não vem a montanha ao Moamé, vai o gajo à montanha. Que um homem não é de ferro e muita sorte já é estar vivo. Já combinei ali com o tio Manecas e qualquer dia metemos mãos à obra. Quero ver depois quem é que nos vai impedir. Somos velhos, mas ainda estamos rijos. E isto já se sabe, os amigos são para as ocasiões. O Manecas pinta o meu prédio e eu pinto o dele. Pode ser que a coisa pegue. Mas tenho cá para mim que esta malta gosta é de viver assim. Cuspir no chão, mijar na rua e atirar lixo pela janela. E como de boas intenções está o inferno cheio vou mas é poupar na tinta que o dinheiro já quase me não chega para a pinga.