Middle Ages

Gosto de pequenos sinais de decrepitude. De pequenos avisos de ruína. Gosto das primeiras rugas, ainda marcas hesitantes do peso do tempo. Dos primeiros cabelos brancos. Dos signos corporais de flacidez. Gosto dos avisos gentis, das memórias suaves. Da indiferença que se ganha com o tempo que se perde. Da visão turva e dos passos mais lentos. Do cansaço subliminar. Gosto de ruínas. Essas persistentes memórias de passados esquecidos. Gosto do que fica do que se perde. E também dos pequenos sinais que a perdição ajuda a ganhar. Gosto da vacuidade e da contemplação. Gosto de abraços ligeiros e gestos inseguros. Gosto de cumplicidades cósmicas e intangíveis. Gosto do sopro do vento ao fim da tarde e do riso de Deus ao princípio da noite. Gosto de gatos vadios e de cães mansos. Gosto do sono crepuscular e do lento despertar. Gosto da indeterminação da saudade e do silêncio acolhedor. Gosto de Igrejas nuas e pesadas, sem vestígio de ouro, sem rasto de imagens. Gosto da densidade do deserto e do desassossego apreensivo. Gosto de filmes de terror sem sangue nem efeitos especiais. Gosto de criaturas estranhas que procuram às apalpadelas. Gosto das pequenas ilusões e de pessoas que se distraem. Gosto de objectos insignificantes e de espectros benevolentes. Gosto da tristeza leve e do desencanto encantado. Gosto de palavras sensatas e de abrigos reconfortantes. Gosto quando não sei se gosto do que ao gostar não sei se gosto. Gosto de respostas equivocas e de perguntas enigmáticas. Gosto das pequenas ambiguidades. Gosto do humor quase branco e da vaidade desajeitada. Gosto do tempo interior e do espaço infinito. Gosto de metanarrativas e de histórias dentro de histórias. Gosto da fragilidade do ser e da inocência da vida. Gosto do perdão recíproco e da dádiva inconsciente. Gosto da clarividência e dos rasgos proféticos. Gosto do romantismo arcaico e do realismo crítico. Gosto de tiques e de incorrecções, de pequenos erros e de rostos ruborizados. Gosto de pequenos pudores e de sorrisos desengonçados. Gosto de aristocratas decadentes e de plebeus solitários. Gosto de crianças com aspecto intelectual, que agradecem e pedem licença, que gostam de ler e que conseguem suportar a quietude do momento. Gosto de crianças precoces e de adultos tardios. Gosto dos desvios involuntários à normalidade. Gosto de singularidades. Gosto de génios atrapalhados e de gigantes caridosos. Gosto da bondade descuidada e da imaginação poética. Gosto de artérias mais do que de veias. Gosto de trejeitos e de pequenas recompensas. Gosto dos sonhos de Deus e dos pesadelos do Diabo. Gosto da fraqueza do vencedor e da coragem do vencido. Gosto da imaginação fabulosa e da mitologia simbólica. Gosto de mulheres muito bonitas que pouco cuidam de si e gosto de homens que se estão nas tintas e se preocupam demasiado. Gosto de paradoxos e de mentes contraditórias. Gosto da complexidade e da acuidade intelectual. Gosto do amor que não sufoca nem sabe bem se existe. Gosto da qualquer coisa que nunca se sabe ao certo o que é. Gosto de olhos doces e de sombras fugidias. Gosto da tristeza que nos fica quando nos querem fazer felizes e da alegria que nos invade quando nos preferem livres.

2 comments:

ana said...

gosto desta diferença entre nos quererem fazer felizes e nos preferirem livres.

Anonymous said...

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