Areia para os olhos

Israel e Líbano dão versões opostas sobre massacre em Qana

- Ok. Não percebo. Mas quem é que matou as crianças afinal?
- Pá, eles põem crianças à frente, estás a ver? Utilizam-nas como escudo humano, percebes? Quem matou as crianças foram os gajos. O Hezbolas. Israel não tem culpa nenhuma, estás a ver?
- Não estou a ver lá muito bem. Mas espera aí. Vamos assim tipo a um exemplo.
- Pode ser. Eu curto dos exemplos. Manda vir.
- Então, vá lá, concentra-te. Imagina um assassino. Um gajo inqualificável…
- Um gajo quê?
- É pá, um grande cabrão, um grande filho da puta, um criminoso de merda, um gajo que já matou mais gente do que os teus dedos das mãos, uma criatura nojenta.
- Chumbo nesse cabrão!
- Pois, é aí que eu quero chegar. Agora imagina que o gajo raptou uma criança.
- Filho da puta!
- Estás a acompanhar?
- Continua…
- O gajo raptou uma criança. É pá, o gajo é um assassino. O gajo está-se nas tintas para a vida do puto. Agora o gajo ameaça que mata o puto se alguém tenta alguma coisa contra o gajo. O que é que fazemos?
- Estoiramos os miolos ao cabrão!
- Foda-se, pá! O gajo disse que matava o puto!
- Então o que é que fazemos? Não podemos ficar só a olhar.
- Podemos tentar negociar com o gajo.
- Eu não negoceio com filhos da puta!
- Mas o gajo tem a criança. Agora imagina que ele põe a criança à frente dele, que a usa como escudo humano, que para matares o cabrão, tens que matar a criança. O que é que fazes?
- É pá eu mato o filho da puta!
- Mas matas a criança?
- Calma aí. Tu não me atires areia para os olhos! Quem matou a criança foi o gajo. O gajo é que a usou como escudo humano. Eu só queria matar o grande filho da puta. É culpa minha que ele tenha lá posto a criança? Vai mas é para o caralho mais os teus exemplos.

Da suposta dicotomia entre o corpo e a alma

Ela vive dentro do seu corpo. Diz que é por ele e com ele que contacta com o mundo. Que o corpo é uma flor, cheio de tecidos secretos e ambivalências. Que um dia um corpo há-de nascer do seu corpo. Consegues imaginar? Um corpo a nascer de outro corpo. Um corpo a viver dentro de outro corpo. Um corpo que é já outro corpo dentro do corpo que dentro do corpo é já corpo. O seu sexo é um segredo interno. Curva-se e recurva-se para dentro. Dentro de mim entra o corpo que já é corpo de outro corpo. Ela ouve, vê e sente com o corpo. Até pensa com o corpo. O corpo é cérebro multidimensional. Não uma máquina comandada por uma mente. Tudo é já corpo e saber e sentir e amar. Não há como sair do corpo a não ser no corpo de outro corpo. Ou como entrar no corpo sem que outro corpo ocupe o que do corpo se abre para que no corpo se entre.

Ele vive dentro da sua mente. Diz que as ideias lhe alimentam o desejo. Que as portas são todas mentais. Lê livros sobre o cérebro e os seus mistérios. Mas é a mente que procura. De dentro do que pensa e do que sente. Ele toca dimensões secretas, segredos insondáveis, mistérios primordiais. Já se sentiu planar. Ou não estar no sítio onde está. Um dia as ideias gerarão outras ideias numa torrente infinita de palavras, cores, imagens, luzes, espanto e desconcerto mais ou menos psicadélico. O corpo é uma transposição da mente. Foi no vazio do silêncio que tudo começou. Nele despontou a primeira palavra como uma flor no deserto. Precisas de um pouco de água para não morreres no escuro.

Ela estuda as estruturas sinópticas da pele. Passa a mão devagar pela suavidade corporal da sua vida. Conduz o espasmo e o grito na materialidade concreta do momento. Apela aos sentidos que lhe abrem caminhos sempre novos. O que vejo, o que cheiro, o que toco, o que saboreio, o que ouço, atravessa-me o corpo e dentro consubstancializa-se naquilo que sou.

Ele diz que há um sexto sentido. Que se perde por dentro da mente. Não sabe bem explicar. Nisso é como ela. Mas ela tem um corpo para ofertar. Ele diz que o vazio é como o cansaço que fica depois do prazer. Não se pode bem definir. Ou talvez seja uma variante da possessão. Exorcismo estranho de si próprio. Já imaginaste circuitos abstractos de ideias, sendo ainda parte de nós, mas inventando já outra dimensão? Também aí somos o que fomos e seremos.

Ela abre a mão e diz toca-me

Ele fecha-lhe os olhos e diz imagina-me

O nosso homem na Madeira


Alberto João Jardim é o nosso Fidel Castro.

É claro que Alberto João Jardim não ia gostar nada da comparação. E é verdade que ela é abusiva, e mesmo ofensiva. Para Fidel Castro, evidentemente.

Doroteia ou Alice ao contrário

Doroteia começava a sentir-se farta de estar sentada à beira-rio com o irmão, sem nada para fazer, a não ser mastigar uma broa que trouxera de casa e que estava tão saborosa que Doroteia tentava fazê-la durar o máximo de tempo possível. Espreitara uma ou outra vez para o livro que o irmão estava a ver, mas só tinha gravuras, não tinha palavras. “E de que serve um livro”, pensou Doroteia, “que não tem palavras?”

Pensava para si própria se valeria o esforço levantar-se e fazer um colar de malmequeres. Foi então que, de repente, um coelho cor-de-rosa com os olhos brancos passou a correr ao lado dela. Parou um pouco adiante, tirou o relógio do bolso do casaco e depois de ter olhado para ele, bateu com ele várias vezes no seu joelho, exclamando: “Que vida a minha! Esta merda está sempre avariada! O feiticeiro é bem capaz de ficar zangado se eu me atraso.”

O coelho voltou-se para trás e viu Doroteia. Aproximou-se e perguntou-lhe as horas. Doroteia não ficou muito surpreendida por ouvir um coelho falar. Estava mais intrigada com a cor do bicho, pois nunca antes tinha visto um coelho cor-de-rosa. Pensou para si própria que ele ficaria bem numa parada gay, e não conseguiu evitar uma pequena gargalhada. O coelho não ligou ao riso de Doroteia. Estava demasiado envolvido pelo verde dos seus olhos. É que bem vêem, quando se tem olhos brancos, quaisquer olhos nos conseguem impressionar, desde o vulgar castanho até ao esplendoroso azul.

O coelho, sem conseguir tirar os olhos dos olhos de Doroteia, perguntou-lhe o nome. Doroteia ficou a pensar durante algum tempo. Não gostava lá muito do seu nome. Por fim respondeu, sorrindo:

- Alice.

Sexualidade e direitos de personalidade

As religiões nunca deram grande destaque à mulher. Nunca a trataram da mesma forma que tratam os homens. Eva é a companheira de Adão, mas Adão é mais do que apenas o companheiro de Eva.

Siddhartha de hermann Hesse é talvez um bom exemplo. Porque procura ser um livro religioso no sentido profundo da expressão. Pouco ou nada as mulheres existem nesse livro. Só uma merece lugar de destaque: Kamala. Mas esse é um lugar estritamente ligado à sexualidade. Kamala é mestra na arte do prazer e do uso sensual dos sentido. Esse é o seu domínio, o seu ofício. E Kamala dificilmente ultrapassa os limites desse seu território. É verdade que mais tarde procurará Buda, coisa que pensará fazer ainda jovem, mas que só fará quando a idade pesar e a sua boca vermelha e viva, comparável a um figo maduro, se tornar apagada e envelhecida. De certa forma é este o lugar que o cristianismo dá à mulher. E fica a sensação, que apesar de tudo, o cristianismo ainda foi das religiões que mais destaque deu à mulher e à sua personalidade. É certo que o fez anulando a sua sexualidade. Como se a mulher só pudesse ser pessoa para além ou aquém do seu sexo, o que acaba por ser uma forma de legitimar a redução da mulher à sexualidade. O teu sexo tira-te a personalidade, a tua personalidade tira-te o teu sexo. E, no entanto, uma pessoa, e isto o cristianismo parece ter compreendido, só é verdadeiramente respeitada enquanto tal se as suas relações intersubjectivas passarem pela sua personalidade, pela sua pessoa total, e não apenas por este ou aquele aspecto dela. Kamala, neste sentido, não pode ser verdadeiramente respeitada. E é em grande medida por isso que Siddhartha não a consegue amar verdadeiramente, tal como ela não consegue amar ninguém. E é só quando mais tarde se reencontram, quando Kamala, já envelhecida, parte para ver Buda morrer, levando consigo o filho, que sem o saber Siddhartha lhe tinha feito, é apenas nessa altura, quando reencontra Siddhartha, quando este a reconhece, a ela que vem mordida por uma cobra e que vai morrer brevemente, e quando reconhece o seu filho, é nessa altura que alguma coisa do que poderíamos chamar amor acontece. Mas nesta altura Kamala já não é quem era, não é a cortesã mas a mãe, não é a jovem sensual e provocadora, mas a mulher envelhecida e quase assexuada. Kamala só é verdadeiramente respeitada e só toca o amor quando perde a sua sexualidade, só nessa altura se torna verdadeiramente uma pessoa. Não é difícil perceber que estamos aqui no seio do drama, tão bem representado pelo cristianismo, da santa e da puta. A puta seria pura sexualidade sem personalidade, enquanto a santa é uma mulher finalmente com plenos direitos de personalidade, mas amputada da sua sexualidade. Enquanto Kamala é a mestra do prazer, é apenas a esse nível que é tratada, mas só quando perde o seus trunfos e se torna mãe (a maternidade aparecendo como uma forma de sublimar a sexualidade, ou seja, de reduzir a sexualidade à reprodução, princípio que o cristianismo irá defender como forma de divinizar o uso do sexo) é que finalmente adquire personalidade.

Ora a resolução e superação desta contradição seria aquilo para que deveria apontar o discurso de emancipação da mulher. O que é a emancipação da mulher? Para responder em poucas palavras, ela outra coisa não deveria ser do que a posse pela mulher de todos os seus direitos de personalidade. A mulher, como aliás o homem, devem ser tratados sempre e em qualquer situação como pessoas, como personalidades totais e não parciais. O cristianismo em grande medida tentou apontar para aí, é também talvez por isso que o seu fracasso nos parece hoje quase absoluto. E isto porque o cristianismo apontou para esse caminho amputando a mulher da sexualidade. A filha, virgem, a esposa, propriedade sexual de um marido com um direito de uso limitado à reprodução, a mãe. Ou então a santa, e a ausência total de sexualidade, a castidade. Mas o que é preciso entender é que esta forma de limitar a sexualidade permitiu à mulher ganhar direitos de personalidade. A boa filha e a boa esposa, a mãe e a santa passam a ser mais respeitáveis socialmente do que as mulheres que são vistas apenas como sexualidade, a prostituta, a devassa, a infiel. Como sair daqui? Uma das respostas, vinda de um feminismo aparentemente mais radical, mas no fundo mais ingénuo, e hoje outra vez na moda, tende a entender como caminho da libertação da mulher a inversão radical desta utopia cristã. A mulher definida enquanto género, enquanto sexualidade, enquanto corpo. É um discurso fácil e atraente, não admira pois o seu sucesso, além de ser politicamente inócuo. É um discurso que se centra em questões de género – o que é ser homem?, o que é ser mulher? – e não em questões sociais e politicas. Um discurso que parece acreditar, ou ao menos querer fazer acreditar, que as mulheres se libertam pela sexualidade, essa mesma que foi usada como forma de subjugação da mulher: tu és sexo, e serás apenas sexo. O homem é também sexo, mas é sempre mais do que isso. E provavelmente esta nova redução da mulher à sexualidade é uma forma tão eficaz de a desqualificar enquanto pessoa como o foi ao longo de tanto tempo a castração da sua sexualidade.

Alice III

I
Não sabemos nada, Alice, não sabemos nada sobre o essencial. Somos criaturas tacteantes. Pouco vemos e pouco compreendemos. Pouco sabemos. Pouco somos. Ao menos durante esse breve suspiro que imaginamos ser a nossa vida e que vai do nascimento à morte, o que quer que seja, tenha sido ou venha a ser isso a que chamamos nascer viver morrer. O ser lançado no mundo. É isso que somos. Um fósforo rasgado contra as trevas. Uma réstia de luz. Um abrigo para a esperança. É isso que somos. O pouco transformado em muito, transbordante de si, o muito reduzido a nada, o nada reinventado de cinzas. É isso que somos. É isso que sempre fomos e seremos. A respiração de Deus. É talvez isso a vida e nada mais. A respiração de Deus. Somos como o vento que sopra e que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai. Somos o tempo que passa e que regressa sempre. Que estando nunca está e que não estando nunca deixa de estar. Somos frágeis, transitórios e incertos como a memória. Inseguros como a saudade. Misteriosos como a noite. Estranhos como a vida. Somos mãos abertas e estendidas. Somos cabelos soltos. Somos corpos habitados por fantasmas. Somos o que fica do que passa e o que passa do que fica. Somos tudo e não somos nada. somos feitos de luz e de sombra. Somos um equilíbrio de contrários. Uma dialéctica de opostos. Que afinal são o mesmo. Com outro rosto. Outra forma. Outra configuração. Mas tudo parte do mesmo ser. Sem limites definidos. Tocando-se, penetrando-se, fecundando-se. Como o masculino e o feminino. Como o espaço e o tempo. Como o ying e o yang. Como o quente e o frio. Como o pesado e o leve. Como o forte e o fraco. Como a razão e a loucura. Como a vida e a morte. Como a alegria e a tristeza. Como eu. Como tu. Como nós.

II
Alice, para lá do horizonte esconde-se aquilo que os olhos não podem ver, as mãos não alcançam, a mente não imagina. Para lá do horizonte esconde-se o sentido da esperança, o destino da procura, o conhecimento desconhecido. Para lá do horizonte está tudo aquilo que tu és e que eu sou. Para lá do horizonte está o que nos completa. Para lá do horizonte estamos nós. Para lá do horizonte está a verdade da ternura e o silêncio da felicidade. Para lá do horizonte estão os olhos que os olhos não podem ver, as mãos que as mãos não podem tocar, a mente que as mentes não sabem pensar. Para lá do horizonte está tudo o que não existe, o que não tem espaço nem tempo. O que vive dentro de nós e não sabemos. Tudo aquilo a que damos abrigo e nos ultrapassa. Para lá do horizonte desenha-se a história da eternidade. Para lá do horizonte estamos nós.

III
Olha para ti. Sabes o que vês? Vês Buda. Ouvi dizer que era assim. Inventámos tantas vidas para desarranjar o pesadelo. Mas nunca sabemos se despertamos. Sabes que Buda um dia ergueu uma flor? No silêncio do segredo revelado todos esperavam uma palavra. Só Mahakasyapa sorriu. Era o sorriso da esperança. Mas a nós ensinaram-nos o desespero. A puta de religião onde crescemos. Com as suas verdades esterilizadas. Puras como o vazio estéril de Maria. A mãe de um Deus eternizado numa cruz. A nossa pequena cultura da morte e da infelicidade. O peso infernal do passado, da memória, do pecado. Marcado na carne como a origem do mal. E caminhamos abismados por dentro de falsas ilusões. Quando Buda pegar na flor não te esqueças de sorrir. O amor é uma estrada onde aprendemos a tocar o íntimo.

Palavras alheias IV: Roger Waters


And the Germans kill the Jews
And the Jews kill the Arabs
And the Arabs kill the hostages
And that is the news
And is it any wonder that the monkey's confused
He said Mama Mama, the President's a fool
Why do I have to keep reading these technical manuals
And the joint chiefs of staff
And the brokers on Wall Street said
Don't make us laugh, you're a smart kid
Time is linear
Memory's a stranger
History is for fools
Man is a tool in the hands
Of the great God Almighty
And they gave him command of a nuclear submarine
Sent him back in search of the Garden of Eden

Can't you see
It all makes perfect sense
Expressed in dollars and cents,
Pounds, shillings and pence
Can't you see
It all makes perfect sense

(Roger Waters, Perfect Sense
in: Roger Waters, Amused to Death)

Fragmentos de blogs perdidos

Alguns textos que aqui (re)publico são fragmentos de blogs precocemente deletados, mas não é bem por “culpa” minha que os volto a publicar. Na verdade, não guardei nada. Apaguei tudo. Ou melhor, guardei uns quantos contos tridimensionais publicados no The Ghost in the machine (era um blog, para os menos informados), mas até esses acabei por perder. Foi-se tudo, com o vento. Quer dizer, deve ser sempre possível recuperar, que isto a informática, já se sabe: persegue-nos, despe-nos, escraviza-nos, controla-nos. Mas estes que agora (re)publico foram preservados pelo Google e pelo Blogger. Não por mim. Reencontrei-os quando me deu a saudade e fui procurar o impossível, reacender o que apaguei. E vai o google e devolve-me umas coisas da floresta (era outro blog, para os menos informados, outra vez), e vai o blogger e devolve-me a Alice. Desmembrada, é verdade. Aqui uma perna, ali um braço, acolá uma mão. Mas achei que a devia remembrar. Já que ainda continua por aqui, então vale mais voltar a dar-lhe forma. Razão tinha talvez o outro (quem leu o Margarita e o Mestre sabe a quem me refiro, e quem não leu ainda vai a tempo de ler) quando dizia que os manuscritos não ardem. Estes não arderam. Persistem. Então vale mais voltarem para aqui. Sem juízos nem prejuízos. Assim, tal como eram e continuam a ser. Mais coisa menos coisa. E prontos, como se diz por aí, então é assim.

Este texto não está lá muito bem escrito, mas esta é a silly season e está muito calor, um gajo quase não consegue pensar nem escrever, e também deve ser por isso que republico em vez de publicar. E também porque fui parvo e "assassino" e não sei que mais ao ter deletado aquilo tudo, e esta é a minha forma de pedir desculpa. I suppose.

Nota: Quem quiser experimentar é ir ao google e procurar por ex. trough the forest glade jctp, e depois carregar em cache, vão ver que a coisa abre. A Alice é irem aqui ao blogger e escrever por ex. Alice jctp, e vão ver que aparece texto desmembrado. Não vale a pena carregarem no link, não vão ter a lado nenhum. Mas se ainda se lembrarem de palavras e frases do blog, vão ver que, com trabalho e paciência, ainda recuperam muita coisa. Pondo um palavrão seguido de jctp é boa estratégia, uma vez que nesses blogs abusei deles.

Palavras alheias III: Aimee Mann

I'll tell you a secret I don't even know
(Aimee Mann)

Alice II

I
Alice nasceu num dia de Primavera. A sua mãe abriu as pernas e Alice saiu da toca. A sua mãe estava habituada a abrir as pernas. Por motivos profissionais. Mas era a primeira vez que as abria para gerar vida. Por incrível que pareça, Alice tinha um pai e este estava identificado. Era quem geria o negócio da mãe. Quando Alice nasceu o sol brilhava e a natureza estava em flor. A mãe quando a contemplou pela primeira vez disse que ela era bonita. E o pai, olho no negócio, disse que era verdade, que a miúda tinha futuro. Era preciso era cuidado, para não a danificar. Usar sim, que é direito que assiste a quem educa, mas abusar não. Alice foi gerada por acidente. Nunca ficou muito bem esclarecido como, mas o certo é que escapou àquele que seria o seu destino natural: o aborto. os pais de Alice, sabe-se lá porque milagre, perderam a cabeça e decidiram que o acidente iria até ao fim. A mãe, claro, ficou feliz como todas as mamãs. Não deixou de fumar nem de beber. E enquanto pôde continuou a trabalhar, que a vida não está para brincadeiras e luxos é para quem pode, não para quem fode, como modo de ganhar a vida. O pai rezou todos os dias para que o acidente fosse menina. Forma de ampliar o negócio familiar. E para que Alice se habituasse de cedo ao seu futuro começou logo a chamar-lhe puta precocemente. Mimos de pai babado. Quem o poderá censurar? Alice não se pode queixar. Tem um papá e uma mamã. Nem todas as crianças podem dizer o mesmo. Que algumas nem família têm. Alice teve amor e um lar onde pôde crescer e ser feliz. É verdade que caiu muitas vezes, foi contra as portas, danificou o seu corpo de criança. Mas a senhora doutora, que estudou na universidade e não se deixa enganar, sabe bem que das escoriações no corpo de Alice a porta está inocente. Tudo isto é fruto do amor paternal e maternal. Mais od paternal do que do maternal, é certo. Mas apenas porque o pai tem a mão mais pesada e melhor pontaria do que a mãe. Raio da miúda é endiabrada e consegue fugir das ternurentas investidas da mamã. Mas do papá ninguém escapa. Nem mesmo a mamã que de vez em quando também leva pela medida certa, maneira outra de dizer que recebe o que merece, Mas com a mamã é preciso mais cuidado. Usar de menos ternura. Não vá o negócio ressentir-se. Alice, por enquanto, ainda é um investimento a médio prazo. Mas com a idade é preciso reduzir na ternura. As crianças, mesmo as muito amadas, não devem ser mimadas. E quando a mulher começar a florir (linda metáfora para a filha da Primavera) é porque está na altura certa para começar. Entretanto vai aprendendo com o papá. Que amorosamente tudo ensina à sua filha querida.
II
Esta é a casa do fantasma. Aqui não podes ficar muito tempo. Aqui só ele habita. Mais ninguém. Podes vir sempre que quiseres. Ficar o tempo que for necessário. Mas não deves abusar. Não é bom andar na companhia dos fantasmas. Eles não sabem o que fazem nem compreendem o que fizeram. Julgam-se inocentes, livres, perdoados. Imaginam que agora tudo acabou. Que tudo sarou. Que o que foi deixou de ser e que o presente nada guardou do passado. Os fantasmas nunca se arrependem. Acham que não vale a pena. Que já não é necessário. Que o esquecimento já apagou tudo. Mas esta é a casa do fantasma. Aqui tu ouves vozes. Vês sombras de outros tempos. E tens medo. Aqui tu temes a hora da chegada do pai. Aqui tu temes as palavras doces. Aqui tu temes a mão que te sobe pelas pernas. Aqui tu temes as mentiras do amor. Aqui tu temes a violação original. Aqui tu temes o corpo, o sangue, a vida. Aqui tu temes tudo porque tudo te foi tirado. Porque nada é o que parece e tudo parece o que não é. Aqui a vida não abençoa a vida. E o futuro rasga o passado deixando marcas indeléveis de dor e sofrimento. Aqui a fenda sagrada transforma-se em cicatriz. Aqui o sangue escorre e a inocência agoniza. O perdão é uma coisa. O esquecimento é outra. E os fantasmas julgam que se pode esquecer sem perdoar. Lá no mundo sem corpo em que vivem não entendem estas marcas que deixaram. Estes espinhos cravados na carne tenra. Esta morte sem remissão. Os fantasmas não sabem nada. Não podem saber. Nem do mal que fizeram nem do bem que poderiam ter feito. Os fantasmas não existem nem possuem realidade. Mas isto que tu sentes invadir-te o corpo. Isto que rasga, maltrata, destrói. Isto que um dia aprenderias ser afinal objecto de prazer. Isto existe demasiado. Cravou-se dentro de ti e já não há forma de o expulsar. A não ser quando ficas assim. Sozinha. Olhando o vazio. Então alguma coisa se dissolve dentro de ti. E inunda-te. É um jorro quente que um dia tentarão te convencer que é o elixir da vida. Seria para rir, se não fosse para chorar.

Não me toques
Não me toques
Não me toques
Não me toques
Alice
Alice
Alice
Alice
Alice
A
l
i
c
e
III
Mas que merda é esta? Quem te dá o direito de fazeres isto? De me expores, de escreveres sobre mim, de me apresentares como produto da tua imaginação? Com que direito o fazes? Gostavas que fizesse o mesmo contigo? Seria bonito, não seria? Para variar. Conheço-te bem. Escreves para fugir. Escreves para te esconder. Escreves para fingir. Mas eu não tenho nada a ver com isso. Quero lá saber dos problemas que tens na cabeça. Quero lá saber se precisas disto como quem precisa de uma droga. Não tens o direito de me usar. Não tens o direito de fazer isso. Escreve sobre ti. Bem sei que há pouco a dizer, não é? A tua vida, no fundo, não tem interesse nenhum. Nunca teve. Mas a culpa é tua. Nâo me puxes a mim para o teu naufrágio. Para as tuas angústias de bolso e para os teus medos patéticos. Eu não tenho que aturar isso. Não tenho que fazer parte do jogo. Estou cansada da puta da tristeza. Dos lamentos de merda. Das pessoas que se arrastam e se lastimam. Sim, falo de ti. Sabe bem ser exposto, não sabe? Mas expor os outros não te dá problemas. Alice isto, Alice aquilo. Alice nasceu assim e vive assado. Deixa-me em paz. estou farta desta merda toda. E não, não penses que vou chorar. Seria uma vitória para ti, não seria? O teu silêncio levar-me às lágrimas. Obrigar-me a cair nos teus braços. Soluçar. Dizer que estou perdida. Implorar-te ajuda. Puta que te pariu! É prazer que não te darei. Disso podes ter a certeza. Sou mais forte do que tu. Sempre fui e sempre serei. Não preciso de ti para nada. O fraco aqui és tu. E por isso escreves da forma que escreves. Afundas-te nesse aquário redondo que tu próprio criaste e onde imaginas estar preso. Delirante. É isso que és. Ou apenas amedrontado. Deve ser isso. Delirante é muito para ti, não é? Sem querer ainda te fazia um elogio. Olha a tua sorte. Estou farta de pessoas que só se queixam. Que não fazem nada e dizem que está tudo mal. Farta do conforto do bláblá. Conforto sim, é sempre conforto. uma boa desculpa, o faz de conta, o talvez, pois, bem, não sei. Que se foda esta merda toda. Ainda por cima estou a escrever. Raio de doença. Deve pegar-se. Como uma epedimia. Ao menos não uso floreados, nem imagens poéticas, nem truques literários, nem essa patranhada toda com a qual iludimos a verdade e fazemos de conta que ainda há salvação. Mas não há, ouviste? Não há. Esta merda está toda fodida e já não há como sair daqui.

Não, não pares agora.

Não, não pares agora. Entra por dentro de mim e descobre um sonho qualquer. Mesmo que seja um sonho impossível de tocar, é melhor quando as tuas mãos aquecem um desejo difícil de explicar. Talvez eu pudesse morrer agora onde tu estás. Ou engolir-te para que de mim voltasses a nascer. Ou procurar outra fronteira mais difícil de atravessar. Há um rio que nos separa e que tem a cor do suor e do sangue e do esperma e de todas as águas que abrem o abrigo onde o riso tristonho se esconde para se revelar numa gargalhada. Já fui trapo para homens enfurecidos. Eles limpavam a sua sede aos meus beiços. Um traço branco escorria-me pelos lábios. Havia gritos e palavras porcas. Daquelas que os homens dizem quando não têm coragem. Mas há uma margem de desejos perdidos. Não sabia bem como se saía dali. Às vezes ficas perdida e não consegues perceber. Depois há sempre outra carta no baralho que te mostra que não és especial. Ontem vi um sapo a roer um guardanapo. Também há crianças por aqui. São devoradas como se pertencessem a quem as penetra. Há algo de agudo no grito tresloucado. Já vi mulheres serem esventradas por facas aguçadas. Entram por todos os orifícios e não segredam prazeres. Não há segredos neste lugar. Tudo é claro como a luz do dia. E assustador. Cogito, ergo sum. Mas não é para isso que te pagam. Nem para pensares nem para seres. Muita sorte tens se amanhã ainda cá estiveres. Desaparecem como sombras as mulheres fantasmas. Há homens que pagam assombrações mutiladas. Cortam fatias do bolo que partilham. O riso é mais vermelho no quarto da morte. Trabalham na forja dos dias as moléculas infantis. Lol não é riso, é código para ninfa. Podes alugar o mistério mas a garantia perde-se. Já vi sangue sair de dentro da terra. Foi como uma mulher a morrer em outros braços. O marido gestor observava de longe. Não foi má a transacção mas já me foderam o negócio. E o que eu investi nesta coisa. Tens segredos daqueles que não se podem contar? Segreda-mos ao ouvido. Para eu adormecer pacificada.

Alice I

I
Chove. Mas é dentro de mim que chove. Na hesitação da constância dos dias. Na indiferença instável da repetição. Doem-me os olhos de pensar. Prefiro ouvir o cantar sibilino dos pássaros. Esquecer o desassossego que me abala, embala. Abrir as mãos e aceitar. Quero lá saber da doçura dos dias. Não são histórias de encantar o que procuro. Cansa-me a insensatez do herói. Procuro outros caminhos aquém do calvário. Não quero esse grito que me persegue. Escrever não tem valor nenhum. É como pintar uma parede, apertar um parafuso, coser uma meia. Deixa o mundo um pouco menos perdido. Nada mais do que isso. Ou cria essa ilusão. A tinta há-de desbotar, o parafuso voltará a ficar largo e as meias rasgar-se-ão com o uso. A leitura não sarará a ferida. Escrevemos como quem lança palavras ao vento. Ninguém sabe que coisa quer. Acabamos por nos habituar a tudo. Devíamos enlouquecer de vez em quando. Com direito a internamento e tudo. Um caso perdido. Degenerescência pura. Agora há químicos que põem tudo no lugar. Articulam o que outros desarticularam. A vida é um sorriso breve. Talvez já tenha dentes podres. Há tanto que anda por cá - Mas não deveria dizer podres, tem uma cáries. Agora queremos tudo bonito. Mimado. Lindo. Qualquer coisa nos serve desde que seja colorida e alimente a nossa inglória desgraça, leia-se falta de graça. Falo dos segredos de deus (assim mesmo com letra pequena, para ser mais igual a nós), não da pequenez anã dos gigantes. Um dia acabarei de vez. Porei fim ao fantasma inarticulado que me guia os passos. Nada há a esperar para além de nós. Não regressaremos a nenhum perdido paraíso. Perdidos somos nós e os passos que damos. É no jogo dos espelhos que se encontra a luz. Um reflexo do calor. Nada mais. Aquecer-me para não morrer de frio. Como um arco-íris que não sabe se nasceu para ver a chuva ou o brilho do sol. E não entende que nasceu do profundo amor que impede que o choro e o riso se separem. Parecem habitar mundos diferente, mas só são felizes em pemanente eclipse. Como o sol e a lua. Mas aqui há outras fantasias. Iluminadas por espelhos que acariciam. Quebrar em caso de emergência. A porta fecha por dentro e ninguém já sabe como é que se sai. Mesmo que estejamos todos enganados e já vivamos no lado de fora. Nem um palavrão, Alice. A partir de hoje, é proibido. Foda-se, deves estar a brincar comigo, caralho. Não sei se devo rir ou chorar. Fazes-me cócegas transcedentais. O que é que isto quer dizer? Sei lá. Falo por falar, da mesma forma que escrevo. São labirinticos percursos do ser. Dá um ar filosófico à coisa. Também ninguém vai ler isto. Tanto faz. As calamidades repetem-se na certeza da tragédia. Aqui uma mão, ali um pé. Às vezes é o que chega para fazer um cadáver. Já se inventaram fabricas que viviam da morte. Parece que davam gtrandes lucros. Espalharam-se tripas por superfícies ensanguentadas. Parece que o diabo (assim com letra pequena para ser menos diferente de nós) gosta do cheiro da putrefacção. Outros imaginaram que o deveriam oferecer em dádiva. Tudo no mundo te pertence, Senhor. Que é o homem, para que percas o teu tempo? Tens mais que fazer, não é verdade? Tratar um pouco de ti. Bem que andas precisado. O culto da imundície não te tem feito bem. Arrastam-se aos teus pés, Senhor, os pobres que dizes amar. Mas eu sei que é só ódio, que é tudo só ódio, que não há nada mais senão ódio. Mas não o deveria dizer. Silencia sempre a verdade. Pode ser que não sejas apanhado. Se te apanham crucificam. Os vermes reclamam alimento. Os cadáveres são mais saborosos depois de muito sofrimento. O sangue torna-se agridoce. Escusas de lamber os beiços. Eu sei que tu gostas. Todos nós gostamos. De gritar em êxtase contra as madrugadas frias. Sou também isto que escrevo. E isto não é grande coisa. Nada vale o que parece e nada parece o que vale. Há sempre um intervalo entre o que as coisas são e o que aparentam ser. A verdade revela-se nos interstícios da ilusão. A lâmina caiu ao chão. Ainda sem sangue. O que estavas a fazer? Ias cortar os pulsos? Não, não ia. E também essa lâmina não presta. Ainda era capaz de me magoar com a brincadeira. Estava só a ver até onde conseguia chegar. E não iria tão longe. O hospital é aqui perto e o cemitério fica do outro lado da rua. Isto será uma arma branca? Assim, junto ao pescoço de alguém, faria o sangue esguichar. Sorriso vermelho. Mas a prisão também não fica longe. O mundo anda muito concentrado. Já não há ilhas desertas. Os selvagems habitam entre nós. Esqueceram os espaços originais, a música desarticulada, a possessiva invocação dos mortos. Um dia eu serei chama. Arderei como o fogo que me queima. Verás rasgos de luz no céu. O regresso afinal estava para breve e não o sabíamos. Esta geração não passará sem que o filho do homem rasgye o horizonte do céu. Cada maluco com a sua mania. Mas cantaremos canções em Abril. Num sonho muito vago de uma revolução inexistente. Respiraremos no âmago casto das flores de Maio. Morrerão sem desendência, mas a ninguém negarão o seu perfume. Amorosas filhas de outra esperança. Não sei contar as histórias que ficaram por contar. Só reinvento as que herdei. As que os sepulcros inviolados não sabiam devolver. Aqui não haverá ressurreição, mas o calor baço do amor. O calor baço do amor.

II
Alice, escrever é a mais difícil das artes. Não há outra mais perversa, mais tensa, mais reveladora. Não há outra mais falsa e mais fantasmagórica. Escrever é sempre uma promessa de esperança. Uma porta aberta ao desejo. Um sorriso a adormecer junto a corpos apaziguados. Escrever é estar a caminho entre o que se perdeu e o que se conquista. Escrever é a maior das verdades. Escrever é a maior das ilusões. Alice, falhei todas as artes para manter apenas esta. Para me iluminar de palavras. Falhei a fantasia teatral. Falhei o delírio cinematagráfico. Falhei a imaginação pictórica. Falhei o desassossego fotográfico. Falhei a luz musical. Falhei todos os passos da dança. Falhei todas as artes. Para menter apenas esta. Aquela que de mim sabe. Onde sou mais do que eu. Onde venço o mundo quando perco. Onde me encontro sempre sem nunca me encontrar. Alice, as frustrações alimentam o meu amor. Não o meu ódio. Criam pontes secretas entre as palavras e eu. Molham-me os lábios. Agitam-me o coração. Revitalizam-me todos os músculos. Concentram o sangue. Erguem o tempo. É aqui que me encontro. Na suave textura das palavras. Na sua rudeza. No seu sabor. Somos feitos de palavras, Alice. Elas são a seiva da vida. São elas que marcam o teu amor e glorificam a tua frágil presença no mundo. São elas que te recompõesm quando tudo parece perdido. Melhor que as palavras, Alice, só o silêncio. Esse que as trai e as revela. Ao mesmo tempo.

III
Há mais segredos assim. Resguardados a medo da incompreensão. Mas de nada vale. Somos aquilo que somos. Não tenho sequer convicção a escrever. Deixo o texto fluir. Penso a intervalos. Devia viver assim. Mas talvez esta escrita seja afinal produto da minha dificuldade de viver. Se fosse fácil respirar, não escrevia. Tremem-me as mãos. Tremem-me sempre. Não leves a mal. Não é por tua causa. É o frio que está dentro de mim. O calor da hesitação. Sou mau a negociar. Faço as coisas por defeito. Escolho caminhos enviesados, talvez para não escolher caminho nenhum. Que importa tudo isto. Palavras vazias atiradas a um ecrã de computador e pouco mais. É tempo de parar. O cansaço acaba por nos dominar. Como o rio que nunca desagua e habitua-se a ficar por lá. Não sei se estás aí, Alice. Nunca o soube. Nem sequer escrevi para o saber. Não sei porque escrevo. E prefiro assim. Há uma pureza maior em não saber. Em ser como o vento que passa. Escrevo palavras que magoam. Escrevo palavras que sangram. Nem eu sei bem porquê. Talvez precise desta espécie de fantasmagoria para me apreender um pouco melhor. Ou me perder ainda mais. Ou de não sair de onde sempre estive, que é o que mais faço na vida, desperdiçando-a. Claro que há a esperança do eco das palavras nos olhos de quem as lê. Como poderia não haver? Mas sou tão pornográfico, Alice. E isso assusta-me. Desagrada-me. Dou-me a Tanatos e deixo Eros fugir. Na rigidez obscena das imagens naturais. É a morte que dança perante os nossos olhos. Num jogo de trevas que não nos poderá curar. O erotismo perde-se, como a vida que deixamos para trás. E só sobram os corpos que são armas, gritos que fingem prazer, e sangue que escorre de mortes alheias. Ando-me a enganar, Alice. E também o engano cansa. Preciso de outra esperança que me ensine a viver. De beijos azuis em tardes de mel. O riso pode ser um gesto contrafeito. Tudo parece menos do que aquilo que é. E talvez seja. Não cortaremos os pulsos, Alice. Não é tempo para isso. O sangue não é nada. Não vale a pena irmos por aí. O reino do sangue é como o reino do esperma. Onde os homens se vêm muito apressados para rostos prostituidos de mulheres alheias. Tudo por um bom espectáculo visual. Fechamos tão pouco os olhos.

IV
Há vícios que nos entram na carne. Instalam-se confortavelmente no nosso cérebro. Como o sorriso de um Deus muito velho que perdeu a memória. Somos os escravos da merda que criamos. Gostamos de chafurdar na nossa própria miséria. Em vez de nos levantarmos do divã e subirmos a montanha. Onde o ar que se respira é mais puro. Sem vestígios doentios do sangue e do esperma e da transmissão geneticamente culturalizada e socialmente transmissível na familiaridade dos rostos pornográficos. Mas há sonhos para além de sonhos. Vida para além de vida. Há alguma coisa que nos justifica e nos redime. Não há, Alice? Não o farás mais. Não escreverás contra ti próprio. Sequer sobre. Ou sim, mas além do que restringes. Criar multimplicidade. És aquilo que dás. Não precisas ter medo. Escrever é uma arte maior. Não é o murmúrio infinito de um lamento. Inventarás vida, sonhos, esperanças, desejos. Libertarás o choro e o riso na certeza da palavra transmitida. Ela é que vale. Aquilo que se segreda ao ouvido. E que alimenta as metamorfoses do amor. O sangue não é nada. O esperma nada é. Apenas sintomas onde se instala o reino do poder. Tu és do meu sangue, tu não és do meu sangue. Sou eu o portador do esperma que te criou. Fui eu que guardei o fantasma perdido do jorro quente. E o sangue une-nos a todos na grande sinfonia familiar. Mas que importa tudo isto. O importante é o que se descobre, não o que se encontra. As palavras que cortam velhos mitos e se rasgam na esperança de novas vidas. Não cortaremos os pulsos. E não perguntarás se eu existo. Claro que existo. Se tu existes como poderia eu não existir. Mesmo que me dissolva como castelos de crianças inventados à beira mar. Sou essa multiplicidade em que me perco. Essas vidas que se misturam numa vida maior. O sangue não é nada. O esperma nada é. A pornografia que nos rodeia é apenas a realidade a gozar consigo própria. Daí a vertigem com que nos engana. Mas é a verdade que rasga e salva. Aquela que se procura para além das evidências e do ritmo certo da ausência de prazer.

V
Mas há um lugar onde a esperança mora. Onde o caminho para o paraíso é já o paraíso. Onde o ser ilumina o tempo e o tempo redime a eternidade. Há um lugar onde começar e acabar é sempre já e ainda estár a caminho. Há um lugar onde o tempo é reencontrado à sombra de sonhos em flor. Onde a prisioneira se confude com a fugitiva. Onde os meus lábios tocam os teus. Diz-me, ao menos, que as palavras que escrevo valem um beijo teu ou o lento rasgar dos teus lábios num sorriso.

VI
Fecha os olhos, Alice. E eu digo-te versos imemoriais. Eu digo-te o céu e a terra. Eu digo-te o oceano e os rios. Eu digo-te as montanhas e os vales. Eu digo-te a morte e a vida. Eu digo-te o choro e o riso. Fecha os olhos, Alice. Eu conto-te segredos que nunca contei a ninguém. Eu digo-te da dor e do sofrimento. Eu digo-te da esperança e da loucura. Eu digo-te da solidão e do medo. Eu digo-te do sonho e da utopia. Eu digo-te tudo o que nunca ouviste em palavras que nunca mais esquecerás. Eu digo-te o amor.

Possa ela ao menos ser bela

Não sei. Não sei porque o fiz. Não consigo explicar. Talvez nem haja explicação. Mas alguma tem que haver. Compreender é completar um puzzle a que faltam sempre peças. Mas apesar de tudo temos que tentar. Fazer sentido do pouco sentido que nos resta. Talvez tenha sido por medo. Nem eu sei bem do quê. Há coisas que nos tocam de tal forma que quase nos matam. Às vezes de dor. Outras de prazer. A maior parte delas de ambos ao mesmo tempo. Creio que o fiz para me curar. Na ilusão de que me curaria. Talvez não se escreva por outra razão. E não haja outra razão que nos possa levar a destruir o que escrevemos. A maturidade é perceber que não há cura. Só há processos de cura. E libertarmo-nos deles é voltarmos a cair nos braços da doença. A maior manha do diabo, escreveu o Baudelaire, é convencer-nos que não existe. Dizer estou curado é como dizer estou morto. A vida é uma eterna convalescença. Somos parte desse medo e dessa coragem. Desse desespero e dessa esperança. Não sei porque o fiz. Senti necessidade. Há coisas que não conseguimos entender. Fazemo-las mesmo não as querendo fazer. O pecado é apenas isso. A contradição consigo próprio. Ou melhor: a ilusão de que se resolveu a contradição. De que há um recomeço absoluto, um espaço zero, um perdido paraíso a que é possível voltar. Mas não existe tal coisa. Tudo é apenas continuação, caminho, vida. Estamos aqui porque estamos aqui. Não há explicação para o essencial porque se houvesse ele tornar-se-ia acessório. Só o mistério revela a verdade. Só a verdade explica o enigma. Só o enigma encontra a solução. Só a solução descobre a pergunta. Só a pergunta inventa a resposta. Só a resposta encontra a saída. Só a saída se transforma em entrada. Só a entrada instaura o lugar. Só o lugar preenche o tempo. Só o tempo gera o ser. Só o ser se perde na vida. Só a vida se entrega à morte. Só a morte se dissolve no amor. Só o amor explica o mistério. Só o mistério…

Não sei porque o fiz. Talvez faça parte do mistério. Por vezes temos muito medo e muito frio e nem sabemos explicar porquê. E queimamos o que criámos na tentativa vã e desesperada de nos aquecermos. Dizemos que estamos loucos. E que nos dói. E que se fizermos isto nos curamos. E depois percebemos que não há cura. Que nunca houve. Que tudo o que existe são processos de cura. E que esses fazem sempre parte da nossa loucura. E que é bom que assim seja. Porque assim nem tudo se perde. Nem tudo em nós de nós se perde. E a maior loucura é querer sair dela. Imaginar que há um lugar. Temer as superfícies. Procurar a cura como quem procura se livrar de si próprio. Não sei bem o que estou a escrever. Nunca o soube, mas é talvez assim que escrevo melhor. Quando não quero saber. E deixo sair. E deixo estar. E deixo ficar. E melhor ainda escreverias se aprendesses a guardar. E não fugisses de tudo e de todos sem perceberes que foges apenas de ti. Estava louco. O que queres? Não sei explicar. E talvez seja melhor assim. Não haver explicação. Ou eu não a conseguir encontrar.

No fundo, não há explicação. Para nada há explicação. As coisas são o que são. E nem costumam ser grande coisa. Mas se calhar é melhor assim. Aceitar. A fatalidade das palavras perdidas. Ficam na memória de quem as guardou. Mesmo que já mal lembradas, elas estão lá. Nunca sairão de lá. Mesmo que se confundam com o pó do inconsciente. Ou não se consigam fazer ouvir por entre tantos gritos. Somos feitos de gritos, sabias? Veio-me agora a ideia. Assim sem mais nem menos. Somos feitos de tudo aquilo que gritamos. Mas gritar não é falar mais alto. Gritar é quase sempre cantar. E por isso pode soar doce aos teus ouvidos. Como o perfume impossível de flores extintas. Mas tu respiraste. E eu sei que o ar que partilhámos existe em algum lugar. Mesmo que eu agora só encontre fragmentos. Memórias vagas. Esboços destruídos de rostos risonhos. Alguma coisa aconteceu. Mesmo o que se perde se encontra, senão não o poderíamos ter perdido. Quando choramos ainda rimos. Porque aprendemos a amar a vida. E cada palavra. E o amor que com elas, por elas, e nelas, é possível fazer-se.

Talvez tenha sido apenas uma história de amor. Breve, vaga, estranha. De que se guarda apenas uma memória igualmente breve, vaga e estranha. Possa ela, ao menos, ser bela.

Middle Ages

Gosto de pequenos sinais de decrepitude. De pequenos avisos de ruína. Gosto das primeiras rugas, ainda marcas hesitantes do peso do tempo. Dos primeiros cabelos brancos. Dos signos corporais de flacidez. Gosto dos avisos gentis, das memórias suaves. Da indiferença que se ganha com o tempo que se perde. Da visão turva e dos passos mais lentos. Do cansaço subliminar. Gosto de ruínas. Essas persistentes memórias de passados esquecidos. Gosto do que fica do que se perde. E também dos pequenos sinais que a perdição ajuda a ganhar. Gosto da vacuidade e da contemplação. Gosto de abraços ligeiros e gestos inseguros. Gosto de cumplicidades cósmicas e intangíveis. Gosto do sopro do vento ao fim da tarde e do riso de Deus ao princípio da noite. Gosto de gatos vadios e de cães mansos. Gosto do sono crepuscular e do lento despertar. Gosto da indeterminação da saudade e do silêncio acolhedor. Gosto de Igrejas nuas e pesadas, sem vestígio de ouro, sem rasto de imagens. Gosto da densidade do deserto e do desassossego apreensivo. Gosto de filmes de terror sem sangue nem efeitos especiais. Gosto de criaturas estranhas que procuram às apalpadelas. Gosto das pequenas ilusões e de pessoas que se distraem. Gosto de objectos insignificantes e de espectros benevolentes. Gosto da tristeza leve e do desencanto encantado. Gosto de palavras sensatas e de abrigos reconfortantes. Gosto quando não sei se gosto do que ao gostar não sei se gosto. Gosto de respostas equivocas e de perguntas enigmáticas. Gosto das pequenas ambiguidades. Gosto do humor quase branco e da vaidade desajeitada. Gosto do tempo interior e do espaço infinito. Gosto de metanarrativas e de histórias dentro de histórias. Gosto da fragilidade do ser e da inocência da vida. Gosto do perdão recíproco e da dádiva inconsciente. Gosto da clarividência e dos rasgos proféticos. Gosto do romantismo arcaico e do realismo crítico. Gosto de tiques e de incorrecções, de pequenos erros e de rostos ruborizados. Gosto de pequenos pudores e de sorrisos desengonçados. Gosto de aristocratas decadentes e de plebeus solitários. Gosto de crianças com aspecto intelectual, que agradecem e pedem licença, que gostam de ler e que conseguem suportar a quietude do momento. Gosto de crianças precoces e de adultos tardios. Gosto dos desvios involuntários à normalidade. Gosto de singularidades. Gosto de génios atrapalhados e de gigantes caridosos. Gosto da bondade descuidada e da imaginação poética. Gosto de artérias mais do que de veias. Gosto de trejeitos e de pequenas recompensas. Gosto dos sonhos de Deus e dos pesadelos do Diabo. Gosto da fraqueza do vencedor e da coragem do vencido. Gosto da imaginação fabulosa e da mitologia simbólica. Gosto de mulheres muito bonitas que pouco cuidam de si e gosto de homens que se estão nas tintas e se preocupam demasiado. Gosto de paradoxos e de mentes contraditórias. Gosto da complexidade e da acuidade intelectual. Gosto do amor que não sufoca nem sabe bem se existe. Gosto da qualquer coisa que nunca se sabe ao certo o que é. Gosto de olhos doces e de sombras fugidias. Gosto da tristeza que nos fica quando nos querem fazer felizes e da alegria que nos invade quando nos preferem livres.

O espaço do sagrado

O espaço do sagrado
Existe um espaço do sagrado ou nada é sagrado
O meu corpo é um espaço do sagrado ou apenas a alma o é
Onde é que começa o sagrado
Nos limites do meu corpo ou para além dele numa alma que o transcende
Se não houver alma ou se alma for só outra forma de dizer corpo o sagrado começa no meu corpo
Encerra-se no meu corpo
O corpo é o sagrado
O corpo do outro é a pessoa do outro
O corpo é a alma
O corpo é
O corpo

Palavras alheias II: W. B. Yeats

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul on you,
And loved the sorrows of your changing face.

(W. B. Yeats)

Diz-me que sou apenas uma pessoa igual às outras

Roger Keith Barrett (1946-2006)

Por favor, não digas que sou um génio. Não digas que sou um diamante louco. Não uses metáforas vazias e inconsistentes. A vida não é isso. A vida nunca foi isso. A vida não pode ser isso. Isso é só uma desculpa. É só uma fantasia. É só um refúgio. É só uma mentira. Não fales da minha importância para isto ou para aquilo. Porque não falas do dia em que te cruzaste comigo quando eu ia comprar o jornal? (faz-me falta sair, sabes? Faz-me falta ver o sol. E às vezes até parece que gosto.) Porque não falas desse dia? Ou de outro qualquer. Os dias têm a importância que lhes damos. A minha vida não foram uns escassos anos dourados e uma morte adiada. A minha vida foi o espaço e o tempo que ocupei no mundo. Estranho que ninguém fale nisso. Que se perca tempo com canções que o tempo apagou. Talvez me façam alguma homenagem. Talvez se fale de um diamante louco que outros inventaram. Não eu. Juro que não sou responsável por isso. Nem sei se apareci nesse estúdio de gravação onde me dizem ter visto. São histórias que se contam. Mas a vida é outra coisa. É feita desta carne, deste sangue, destes ossos, deste respirar e deste medo. Por favor, diz-me que sou uma pessoa normal. Bastante vulgar. Que não tenho nada de especial. Que sou chato e irrelevante. Que tu nem gostas muito de mim. Mas já te habituaste à minha presença. Que não vais chorar na despedida porque não precisas da mentira organizada para fazer de conta que me amas. Porque estás aqui e não recordas os anos perdidos. Porque não me julgas nem avalias. Porque não sabes nada de mim nem procuras saber. Porque eu sou só uma pessoa no mundo como tu. E não precisamos de justificações nem de cantos patéticos e nostálgicos sobre diamantes loucos que nunca existiram. O que importa é estares aqui agora. O resto já me é bastante indiferente. Nada pode vencer a grandeza da tua presença. Mesmo que não digas nada. Vens e estás. E isso é maior do que qualquer palavra. Sempre bastante vãs as palavras. Especialmente nestes momentos em que talvez não haja nada a dizer. Tu trazes-me músicas que aprendi a amar. Lembro-me de Pink Anderson e Floyd Council. Lembro-me do silêncio das noites frias. Lembro-me de Emily e dos jogos de Maio. Mas não é isso que importa, no fim de contas. Estares aqui é mais importante do que tudo isso. Estares aqui é um dia igual aos outros. Estares aqui são duas pessoas vulgares. Diz-me que sou banal. Diz-me que sou apenas uma pessoa igual às outras. E sim, podes sorrir, como a criança de ontem me sorriu quando eu voltava a casa.

Diz-me que me lembras assim. Apenas assim. Diz-me que é esta a imagem que queres guardar de mim. Que é esta que é humana, verdadeira, real. Que todas as outras são fantasias que dispensas. Que não há diamantes loucos, nem génios do passado, nem anos dourados, nem vidas perdidas. Nem vidas perdidas, diz-me. Porque tudo é verdadeiro e grandioso e divino. E não temos que fazer de conta, alimentar a engrenagem, sermos menos nós para outros poderem ser mais do que são. Que importa tudo isso? É tudo falso, longínquo, perdido. “Tu, espera aí, eu conheço-te, tu eras aquele que, aquele que.” Não, estás enganado. Deves me ter confundido. Eu não era aquele que. Eu sou aquele que. Se não entendes isto, não podes entender nada. Se não sabes isto, não podes saber nada. “Mas tu não eras aquele gajo que… Olha que tu a mim não me enganas, tenho uma memória que é um espanto, eu até me lembro de coisas que não vivi, vê lá tu bem. Mas eu conheço-te, pá. Tu eras aquele gajo que…” Mas porque insistes. Já te disse que não era. Eu sou. É assim tão difícil de compreender. Ou talvez prefiras dizer-me que eu vou ser aquele gajo que. E que depois, nessa altura, quando eu for aquele gajo que, tu vens para falar comigo. Mas agora eu sou só o que sou. E isso nunca chega, não é? Andamos sempre à procura de diamantes no meio das pedras. Mas só as pedras existem. Eu sou uma pedra. E tu és uma pedra. Escusas de fazer de conta que me conheces porque eu não sou quem tu imaginas e porque tu insistes em imaginar-me como eu não sou. Não sou eu que não estou aí. És tu que não estás aqui. Escusas de inventar labirintos e almas perdidas. Aquários redondos e peixes afogados. Os passos que dou acompanham a minha respiração. Quando o semáforo mudar de cor atravessarei para o outro lado. Mas posso deixar-te um autógrafo. Assim já podes dizer a toda a gente que conheceste um homem. Não uma estrela. Não um diamante louco. Não um génio. Mas um homem. Apenas um homem. Mas talvez isso seja pouco para ti. Talvez prefiras alimentar histórias e mitologias. Há quem as compre a bom preço. Talvez tenhas sorte. Mas comigo não. Não tenho dinheiro para pagar o preço que me pedes. Tenho só uns trocos no bolso. Para cigarros e jornal. Mas se quiseres podemos beber um café. É já ali. Do outro lado da estrada. É só esperar que o semáforo mude. “Não, deixa lá. Deves ter razão. Eu devo estar enganado. Tu não és quem eu penso. Confundi-te com outra pessoa. Às vezes acontece. Mesmo quando se tem uma memória como a minha. Desculpe, se o incomodei. Boa tarde.”

contradictio in actu

Sim, tenho as minhas contradições, os meus enganos, os meus desvios, as minhas mentiras, falsidades e hipocrisias. Mas prefiro assim do que ser linear, ter sempre razão, imaginar que sei a verdade e que já não preciso de oscilar e de me perder a procurá-la. Sei que na contradição reside o essencial de nós próprios. Que se ela é um caminho de pecado e cegueira é também nela que reside o segredo da salvação e do perdão. O pedido de Agostinho: “Senhor, faz-me casto, mas não ainda”, é mais do que uma piada fácil. Agostinho está no caminho certo. Porque o caminho certo não é ser casto ou não o ser. É viver a contradição. E viver a contradição é pensar, coisa que se dispensa demasiado facilmente nos tempos que correm. Mas apenas a inteligência nos pode salvar. Por ela nos perdemos, por ela nos encontramos.

Palavras alheias I: Angela Carter


If women allow themselves to be consoled for their culturally determined lack of access to the modes of intellectual debate by the invocation of hypothetical great goddesses, they are simply flattering themselves into submission (a technique often used on them by men). All the mythic versions of women, from the myth of the redeeming purity of the virgin to that of the healing, reconciling mother, are consolatory nonsenses; and consolatory nonsense seems to me a fair definition of myth, anyway. Mother goddesses are just as silly a notion as father gods. If a revival of the myths of these cults gives woman emotional satisfaction, it does so at the price of obscuring the real conditions of life. This is why they were invented in the first place.

Angela Carter, The Sadeian Woman (1979)

Quadra ao gosto popular III

Queria eu uma estrela
Mesmo que fosse do mar
Para navegar nela
E não me afogar

Quadra ao gosto popular II

Ando eu para aqui à toa
Sem saber o que dizer
Fazia-me cá falta a Broa
Para me ajudar a escrever

Quadra ao gosto popular I

Este blog vai de deprimido a deprimente
Até eu já me sinto doente
Para tornar isto menos decadente
Fazia cá falta era a Vicente

Do amor e de outras redenções

Como é que o amor redime? Ninguém sabe como é que o amor redime, porque ninguém sabe o que é o amor. É como se o amor não existisse. Um pouco como Deus não existe. Nem a alma. O que existe é o sexo, o mundo e o corpo. O resto não tem existência real. E é por isso que é o mais valioso. O nosso tempo, tal como já não é muito dado a acreditar em Deus, também não é muito dado a acreditar na alma. E a quem perde Deus, resta apenas o mundo, tal como a quem perde a alma, resta apenas o corpo. Vivemos hoje para o mundo e para o corpo sem perceber, a não ser em raros momentos de lucidez, que esse mundo já não tem sentido e esse corpo já não tem valor. Nada se joga quando é apenas ao nível do mundo e do corpo que se joga. A verdade e o amor são duas coisas de cuja existência por vezes duvidamos com a mesma força com a qual não conseguimos duvidar do mundo e do corpo. As coisas são o que são e servem para o que servem, dizemos, como se soubéssemos alguma coisa do que as coisas são ou para que é que as coisas servem. Temos respostas, normalmente respostas de bolso, portáteis e simples, para questões que nem sequer colocamos. O essencial de nós próprios está nesse vazio que somos, mas não queremos ser, e na forma como ele se resolve no seu encontro com o mundo, que mais não é do que a palavra de um Deus oculto, tal como o corpo mais não é do que a expressão de uma alma invisível. Sei que escrever coisas como estas, Deus oculto e alma invisível, nestes tempos de relativismo e indiferença, pode soar estranho e mesmo anacrónico. São coisas em que já se acreditou, dizemos, mas em que agora já não se acredita. Ilusão nossa. O Deus oculto não existe para que acreditemos nele, tal como a alma invisível também não existe para que acreditemos nela. De nada adianta acreditar ou não acreditar. O mundo não é apenas o mundo porque se o for não tem sentido e o sentido é-nos essencial e não podemos sequer viver sem ele. E o corpo não é apenas o corpo, porque se o fosse seríamos apenas um objecto, uma coisa, sem valor nenhum, e não o somos, ou ao menos não queremos sê-lo, mesmo quando o somos ou nos querem convencer que o somos ou nós próprios nos convencemos que o somos. Deus é esse sentido e a alma é esse valor. Sem um e outro não podemos existir nem ser verdadeiramente aquilo que somos.

Por dentro do caos

Porque te enganas a ti próprio? O teu registo não é este. Nunca foi. Nunca será. Nunca o poderá ser. Tu só sabes escrever por dentro do caos. Por dentro de mim. Tu só sabes escrever à beira do abismo, naufrago da falência, filho do fracasso, criança perdida em espasmos de desespero. Tu só sabes escrever quando as mãos te tremem. Quando o corpo estremece e parece ter medo. Foges por isso mesmo. Porque tens medo. Mas um dia deixarás de o ter. Porque tu só existes nas palavras rápidas, que tomam conta de ti, que te dominam, que não te deixam pensar nem saber, que são como demónios que entram no corpo e se instalam e a partir de ti se exprimem e se libertam. Só escrever assim vale a pena. Escrever ou é uma forma de possessão ou não é nada. Escusas de querer dourar a pílula, amansar a fera, disfarçar a dor, ofuscar o grito. Escusas de fazer de conta que podes escrever com contenção, coerência e sentido. Escusas de fingir que escreves para transmitir ideias. Quando o que tu queres é espalhar o fogo pelo mundo e escrever não é outra alegria senão essa que se alimenta da esperança de que o mundo já esteja arder. Tu és o poeta das chamas e do grito, do sangue e da dor. Ninguém escolhe propriamente o seu destino. Muito menos o seu estilo. Quem se procura na escrita trai a escrita. Se escrever não é perder-se, escrever não é nada. E escrever tantas vezes não é nada. Só uma vaidade circular, uma perda de tempo, uma mentira estética, um prazer supérfluo. Quando não se ouve o grito, mesmo o grito surdo, não se ouve nada. E não se sabe nada. E não se escreve nada. Escrever é como cortar os pulsos porque é para não os cortar que se escreve. Não há outra razão. A beleza não alcança o essencial. A beleza é apenas um anexo que as criaturas vazias usam para disfarçar a vacuidade. A beleza não tem importância nenhuma. Antes o realismo amoral da pornografia do que a fantasia selectiva do erotismo. A arte não se compõe no cérebro, mas no estômago e só quando é vomitada tem valor. É alimento que se partilha como o sangue e o sémen. Invade corpos alheios, penetra mentes distraídas, recria a chama original que queima por dentro do tempo.

Não tenhas medo. Esta não é a altura de ter medo. O teu registo é este. Sempre o foi. Não te enganes na subtileza e nos truques do diálogo sereno. Tu não nasceste para isso. Tu escreves para não enlouquecer. Nem há outra razão. E a escrita é esse processo de enlouquecimento que explode por dentro de ti. Não esperes muito da tranquilidade das palavras. Tu escreves a sangue. Tu és o poeta do fogo e da vida.

A rapariga do café

Lembras-te da rapariga daquele café pequeno que tu achavas muito bonita, morreu, ontem, matou-se, enforcou-se. Foi encontrada enforcada num… numa… não sei, já não me lembro qual era a árvore, pormenor sem importância nenhuma. Isto dito assim, sem rede e sem explicação. Nem eu procurei uma. Fiquei calado e não comentei. Mas a imagem, que afinal não vi, não me sai da cabeça. Não vale a pena perguntar o que leva alguém ao suicídio. A explicação está na própria forma como se aceita o que aconteceu como tendo acontecido. A vida continua. Para os que cá ficam. De uma maneira ou de outra. Continua sempre. Com mais ou menos entradas ou saídas, caminhos, recantos, encruzilhadas. Não sabia nada da rapariga do café. Nunca soube nada. Nunca sabemos nada. Enfeitamos a nossa ignorância com sorrisos de encanto sem sabermos que o encanto já pode ter-se perdido. Não sei se às vezes não há regresso. Mas isto dito assim. Sem explicação. E até o meu silêncio. Não será tudo isto cúmplice da morte que se avizinha. Que se senta a nosso lado, em silêncio. Que diz vem. Que reconforta pela ilusão breve que oferece. Tudo é fugaz como um sorriso de criança. Envelhecimento precoce. Tempo desastroso. Luzes cinzentas, quase apagadas. Não sabias nada da rapariga bonita. Nunca soubeste. O que olhas nunca é o que vês, o que vês nunca é o que olhas. O sentido. Qualquer coisa que se encontra só quando já não se sabe recuperar. Terá planeado tudo, a rapariga bonita? Terá feito de conta que sim, terá feito de conta que não. Talvez se tenha despedido sem dar a entender que se despedia. É muito perigoso deixar indícios quando se dá o último passo, quando se encena o último gesto, quando se abre a última porta. Mas nós rapidamente a fechamos. Se não era dos nossos aos seus pertence. Que temos que ver com isso? Relatamos o que aconteceu, registamos, pensamos um pouco talvez, estremecemos, e arquivamos porque temos medo. Até quando se ama se arquiva, mas aí não adianta, porque o recalcado regressa sempre, é como a verdade, que morre à superfície depois de ter tocado o mar profundo, naufragado memórias, inventado sonhos, e sabe-se lá que mais. Quanto de nós se perde naquilo que somos? A rapariga bonita. Já nem me lembro bem dela. Agora não a voltarei a ver. Ninguém a voltará a ver. Ou apenas quem a não pode esquecer. Pode ser que haja alguém que a não possa esquecer. Não sei que amores deixou. Que vida era essa que terminou debaixo de uma árvore. Corda ao pescoço. Mas não me lembro que árvore era. Pormenor sem a mínima importância. Nunca soubeste nada. Não te esqueças nunca disso. Que nunca se sabe de nada. E que só o amor nos pode redimir. Mesmo onde o frio toca a noite e a luz se apaga. Não sei.