José e Maria
Ele e ela. Vamos dizer assim. Verdade que é uma maneira fria, impessoal, distante de o dizer. Mas pior seria, em vez de ele e ela, dizer o gajo e a gaja. E daí, talvez não. Melhor será dar-lhes nomes. João não, que é o meu nome. E daria azo a confusões que quero evitar. Ou talvez forçar. Mas isso agora não vem ao caso. Vamos chamar-lhe José, que é nome vulgar e quase tão usado como João, e tem o mesmo número de letras. E a ela chamar-lhe-emos Maria, que é também nome vulgar e por isso reduz, tal como o nome dele, a possibilidade de haver confusões. Ninguém assim pode dizer que este José de que falamos é este ou aquele José. Tanto pode ser como não ser. Josés há muitos. E Marias também. E o nome às vezes é só um engano. Que este José poderia perfeitamente dizer, se fosse pessoa dada a criar confusões, que o seu nome era João. Ou Manuel. Ou Carlos. Ou Pedro. Ou outro qualquer que lhe queiram dar ou que gostassem que ele tivesse. O certo é que mudando o nome, não mudaria a pessoa só por causa disso. E daí, nunca se sabe.
Mas este José e esta Maria é que agora nos importam. Não os outros e as outras. José tinha três amantes. Nada que pusesse em causa, ao menos em teoria, a sua relação com Maria. Eram amantes intelectuais. A política, a religião e a sexualidade. Tinha descoberto que as amava graças a Maria. Não que ele tivesse um envolvimento prático com qualquer destes três assuntos. Longe disso. Seria mais fácil tê-la Maria. Se fosse preciso fazer política, far-se-ia política, acrescentando ao mesmo tempo que de política nada se sabia. Se era preciso ser religiosa, ou fingir sê-lo, ser-se-ia, ou fingir-se-ia, e se fosse só fingido tão bem fingido seria que por verdade passaria, até para a fingidora. E o sexo, pois, então, enfim, fazia parte. Ele para a política não parecia ter muito jeito. Faltava-lhe a manha, a esperteza, o savoir-faire que a coisa parece implicar. Religioso se era, mais por dentro o seria do que por fora. E quanto ao sexo, não era coisa que perseguisse, e ele, do sexo falamos, não do José, também não o perseguia a ele, agora é ao José que nos referimos. Mas fora por causa de Maria, ou graças a ela, que descobrira que estes assuntos, se não eram a sua vida, ao menos interessavam-lhe, e muito, a um nível, por assim dizer, teórico. Eram assuntos que José não podia falar com Maria. Não porque ele fosse mudo ou ela surda, que se assim fosse de alguma forma haveriam de aprender a falar, sobre isto ou sobre aquilo, política, religião e sexo incluídos, e o que as palavras não pudessem dizer, ou porque por José, mudo, não pudessem ser pronunciadas, ou porque por Maria, surda, não pudessem ser ouvidas, ou por causa das duas coisas ao mesmo tempo, o certo é que o que essas palavras diriam, a não poderem ser ditas, por gestos se haveria de dizer. Mas o problema não era esse. Simplesmente Maria, por uma razão ou outra, ou por várias ao mesmo tempo, que é o que normalmente acontece, não se interessava por tais assuntos, chegando mesmo a evitá-los. De política, dizia nada saber. De religião, pois tinha a sua fé e não estava interessada em discuti-la. E de sexo também não falava a não ser no específico contexto da sua prática. Aí até palavrões conseguia dizer. Mas não valia. Estava fora de si. Aquilo dava a volta à cabeça de qualquer pessoa. Era preciso cuidado. Se alguém se habitua a isto ainda é capaz de ficar agarrado. Depois quer deixar e não consegue. De vez em quando ainda vá. Que até ajuda a aliviar. Mas José gostava de falar nestas coisas. Por razões semelhantes, ao que parece, daquelas que afastavam Maria destas coisas. Tinha crescido num mundo onde a política não era tanto o fazê-la como o desfazê-la, com espírito mais ou menos crítico e paixão mais ou menos revolucionária, que o país que é o nosso, e que é o de José, não é muito dado a estas coisas, referimo-nos à crítica e à revolução, que espírito sempre foi havendo, mais não fosse o do vinho, e paixão também, nem que seja apenas a do futebol. Nesse mundo também a religião não tinha escapado às armas impiedosas da crítica. O sexo não estava tão presente, antes pelo contrário. Se revolução havia a fazer, e parece que sim, não era para começarem todas e todos aí a foder com este e com aquele ou com aquela e com esta. Era o que faltava é que isto passasse a ser o da Joana, com o perdão da Joana que não deve ter culpa de nada, e já ninguém conhecesse os limites e as obrigações dos seus direitos e dos seus deveres sexuais. Mas este alheamento do sexo, se talvez tivesse contribuído para não lhe abrir por demais o apetite, sorte a tua Maria senão era um ver se te comia, o certo é que lhe despertou, se assim pode ser dito, um interesse intelectual pela coisa. Mas não a Maria. Para Maria o sexo era uma coisa que acontecia naturalmente dentro do casamento, de preferência católico, apostólico e romano, e que entre outros efeitos agradáveis tinha esse de poder gerar uma criança, e quem é que não gosta de crianças, só quem não tem coração. Com a política e a religião tinha acontecido o contrário do que acontecera com o José. Maria tinha crescido num ambiente apolitizado. Quem quiser imaginar um cenário semelhante não precisa de ir longe, basta olhar em volta, e só com grande azar, ou inusitada sorte, encontrará diferente cenário. Não se discutia política. Nem sequer se falava dela. Isso era lá com eles. Com os que a faziam. A nós o dia-a-dia já dava bastante que fazer. E que falar. De religião falava-se, mas sempre de acordo com as sagradas escrituras, ou se desvio havia, não era com intenção, e assim que era percebido, logo era natural e piedosamente emendado. Estas coisas da religião, na verdade, não são para brincadeiras. Não porque toquem o íntimo e o secreto de todos nós, mas porque metem medo como um filme de terror. Imaginai-vos a vós, se a imaginação humana a tanto chega, condenados a uma eternidade de sofrimento e de gritos e de choro, a arder para todo o sempre, sem perdão nem salvação, algures num qualquer compartimento do Inferno, assim com letra grande, que infernos como sabemos há muitos, e não convém, ao que dizem, confundir este com os outros. Não há nada como o medo para submeter uma alma, tal como não há nada como a fome para dominar um estômago. Mas agora adiante, que o José e a Maria já estão mais ou menos apresentados, ao menos dentro dos limites do que aqui nos interessa, que isto nunca ninguém conhece ninguém de forma clara e definitiva, e por vezes há surpresas, nem a si próprio ninguém se conhece verdadeiramente, e quem imagina que sim ou se ilude ou de si não conhece quase nada.
Não se sabe ao certo se o amor que José agora nutria pelas suas três amantes era coisa que já vinha de longe ou se a paixão tinha sido aguçada pela resistência de Maria em falar nelas. Tenho uma relação intelectual extra-conjugal, disse o José um dia a um amigo. Tens uma amante, é isso, perguntou o amigo. Uma não, três, esclareceu o José. Sorte a tua, disse o amigo, quem me dera a mim. São amantes intelectuais, acrescentou o José. Então fica tu com elas, concluiu o amigo. E o José ficava com elas. Dormia com elas quase todas as noites. Menos aquelas que dormia, ou melhor não dormia, com Maria. Havia um calendário. Ela assim tinha decidido. Isto não convém abusar. Já viste se somos apanhados pela fúria dos sentidos. A José, tal fúria também não interessava. Quando Maria estava de folga, entretinha-se com pornografia. Isso até lhe dava umas ideias que nos dias reservados ao uso da coisa tentava pôr em prática. Mas Maria era relutante. Um dia, José propôs-lhe que tentassem a coisa a três. Maria a princípio disse que sim, que estava bem, que podia ser tudo o que ele quisesse, mas depois esclareceu que aquelas declarações tinham sido feitas a quente, mais especificamente durante o acto, e que ela estava fora de si, nem sabia o que dizia, só queria é que ele não parasse, e ele tinha ameaçado que se ela não quisesse a três ele deixaria ali mesmo de querer a dois, ao menos com ela. Podia ser com a tua amiga, arriscou o José, a Joana, ou lá como é que ela se chama, maluca para isso era ela, ao menos parecia, mas também se podia pagar a uma profissional do sexo, e essa até podia trazer companhia, era só escolher e pagar, não custava nada, maneira de dizer, alguma coisa havia de custar, mas gasta-se dinheiro em tanta coisa mal gasto, que gastá-lo assim era só mais uma forma de o aproveitar, melhor ou pior. Ela cortou o assunto abruptamente. Não sejas parvo, tenho mais em que pensar e mais que fazer. Não que José quisesse muito ter outra mulher na cama. Mas a conversa agradava-lhe. A Maria, não. Por isso levantou-se da cama e fechou-se na casa de banho, batendo a porta com força. José ficou a pensar que devia tentar falar de política e de religião durante o acto, assim a quente, quando ela menos esperasse, como quem espeta um ferro no dorso ensanguentado de um touro enraivecido. Não pares agora que estou quase a vir-me, imploraria Maria. Fode-me toda, diria ele como quem lembra a uma actriz distraída o que deve dizer a seguir. Sim, pois, isso, fode-me toda, gritaria ela. E ele, enquanto o ferro ia e vinha e a tourada estava no auge, lá diria, como quem não quer a coisa: Então o cabrão do Cavaco lá ganhou esta merda!
Mas este José e esta Maria é que agora nos importam. Não os outros e as outras. José tinha três amantes. Nada que pusesse em causa, ao menos em teoria, a sua relação com Maria. Eram amantes intelectuais. A política, a religião e a sexualidade. Tinha descoberto que as amava graças a Maria. Não que ele tivesse um envolvimento prático com qualquer destes três assuntos. Longe disso. Seria mais fácil tê-la Maria. Se fosse preciso fazer política, far-se-ia política, acrescentando ao mesmo tempo que de política nada se sabia. Se era preciso ser religiosa, ou fingir sê-lo, ser-se-ia, ou fingir-se-ia, e se fosse só fingido tão bem fingido seria que por verdade passaria, até para a fingidora. E o sexo, pois, então, enfim, fazia parte. Ele para a política não parecia ter muito jeito. Faltava-lhe a manha, a esperteza, o savoir-faire que a coisa parece implicar. Religioso se era, mais por dentro o seria do que por fora. E quanto ao sexo, não era coisa que perseguisse, e ele, do sexo falamos, não do José, também não o perseguia a ele, agora é ao José que nos referimos. Mas fora por causa de Maria, ou graças a ela, que descobrira que estes assuntos, se não eram a sua vida, ao menos interessavam-lhe, e muito, a um nível, por assim dizer, teórico. Eram assuntos que José não podia falar com Maria. Não porque ele fosse mudo ou ela surda, que se assim fosse de alguma forma haveriam de aprender a falar, sobre isto ou sobre aquilo, política, religião e sexo incluídos, e o que as palavras não pudessem dizer, ou porque por José, mudo, não pudessem ser pronunciadas, ou porque por Maria, surda, não pudessem ser ouvidas, ou por causa das duas coisas ao mesmo tempo, o certo é que o que essas palavras diriam, a não poderem ser ditas, por gestos se haveria de dizer. Mas o problema não era esse. Simplesmente Maria, por uma razão ou outra, ou por várias ao mesmo tempo, que é o que normalmente acontece, não se interessava por tais assuntos, chegando mesmo a evitá-los. De política, dizia nada saber. De religião, pois tinha a sua fé e não estava interessada em discuti-la. E de sexo também não falava a não ser no específico contexto da sua prática. Aí até palavrões conseguia dizer. Mas não valia. Estava fora de si. Aquilo dava a volta à cabeça de qualquer pessoa. Era preciso cuidado. Se alguém se habitua a isto ainda é capaz de ficar agarrado. Depois quer deixar e não consegue. De vez em quando ainda vá. Que até ajuda a aliviar. Mas José gostava de falar nestas coisas. Por razões semelhantes, ao que parece, daquelas que afastavam Maria destas coisas. Tinha crescido num mundo onde a política não era tanto o fazê-la como o desfazê-la, com espírito mais ou menos crítico e paixão mais ou menos revolucionária, que o país que é o nosso, e que é o de José, não é muito dado a estas coisas, referimo-nos à crítica e à revolução, que espírito sempre foi havendo, mais não fosse o do vinho, e paixão também, nem que seja apenas a do futebol. Nesse mundo também a religião não tinha escapado às armas impiedosas da crítica. O sexo não estava tão presente, antes pelo contrário. Se revolução havia a fazer, e parece que sim, não era para começarem todas e todos aí a foder com este e com aquele ou com aquela e com esta. Era o que faltava é que isto passasse a ser o da Joana, com o perdão da Joana que não deve ter culpa de nada, e já ninguém conhecesse os limites e as obrigações dos seus direitos e dos seus deveres sexuais. Mas este alheamento do sexo, se talvez tivesse contribuído para não lhe abrir por demais o apetite, sorte a tua Maria senão era um ver se te comia, o certo é que lhe despertou, se assim pode ser dito, um interesse intelectual pela coisa. Mas não a Maria. Para Maria o sexo era uma coisa que acontecia naturalmente dentro do casamento, de preferência católico, apostólico e romano, e que entre outros efeitos agradáveis tinha esse de poder gerar uma criança, e quem é que não gosta de crianças, só quem não tem coração. Com a política e a religião tinha acontecido o contrário do que acontecera com o José. Maria tinha crescido num ambiente apolitizado. Quem quiser imaginar um cenário semelhante não precisa de ir longe, basta olhar em volta, e só com grande azar, ou inusitada sorte, encontrará diferente cenário. Não se discutia política. Nem sequer se falava dela. Isso era lá com eles. Com os que a faziam. A nós o dia-a-dia já dava bastante que fazer. E que falar. De religião falava-se, mas sempre de acordo com as sagradas escrituras, ou se desvio havia, não era com intenção, e assim que era percebido, logo era natural e piedosamente emendado. Estas coisas da religião, na verdade, não são para brincadeiras. Não porque toquem o íntimo e o secreto de todos nós, mas porque metem medo como um filme de terror. Imaginai-vos a vós, se a imaginação humana a tanto chega, condenados a uma eternidade de sofrimento e de gritos e de choro, a arder para todo o sempre, sem perdão nem salvação, algures num qualquer compartimento do Inferno, assim com letra grande, que infernos como sabemos há muitos, e não convém, ao que dizem, confundir este com os outros. Não há nada como o medo para submeter uma alma, tal como não há nada como a fome para dominar um estômago. Mas agora adiante, que o José e a Maria já estão mais ou menos apresentados, ao menos dentro dos limites do que aqui nos interessa, que isto nunca ninguém conhece ninguém de forma clara e definitiva, e por vezes há surpresas, nem a si próprio ninguém se conhece verdadeiramente, e quem imagina que sim ou se ilude ou de si não conhece quase nada.
Não se sabe ao certo se o amor que José agora nutria pelas suas três amantes era coisa que já vinha de longe ou se a paixão tinha sido aguçada pela resistência de Maria em falar nelas. Tenho uma relação intelectual extra-conjugal, disse o José um dia a um amigo. Tens uma amante, é isso, perguntou o amigo. Uma não, três, esclareceu o José. Sorte a tua, disse o amigo, quem me dera a mim. São amantes intelectuais, acrescentou o José. Então fica tu com elas, concluiu o amigo. E o José ficava com elas. Dormia com elas quase todas as noites. Menos aquelas que dormia, ou melhor não dormia, com Maria. Havia um calendário. Ela assim tinha decidido. Isto não convém abusar. Já viste se somos apanhados pela fúria dos sentidos. A José, tal fúria também não interessava. Quando Maria estava de folga, entretinha-se com pornografia. Isso até lhe dava umas ideias que nos dias reservados ao uso da coisa tentava pôr em prática. Mas Maria era relutante. Um dia, José propôs-lhe que tentassem a coisa a três. Maria a princípio disse que sim, que estava bem, que podia ser tudo o que ele quisesse, mas depois esclareceu que aquelas declarações tinham sido feitas a quente, mais especificamente durante o acto, e que ela estava fora de si, nem sabia o que dizia, só queria é que ele não parasse, e ele tinha ameaçado que se ela não quisesse a três ele deixaria ali mesmo de querer a dois, ao menos com ela. Podia ser com a tua amiga, arriscou o José, a Joana, ou lá como é que ela se chama, maluca para isso era ela, ao menos parecia, mas também se podia pagar a uma profissional do sexo, e essa até podia trazer companhia, era só escolher e pagar, não custava nada, maneira de dizer, alguma coisa havia de custar, mas gasta-se dinheiro em tanta coisa mal gasto, que gastá-lo assim era só mais uma forma de o aproveitar, melhor ou pior. Ela cortou o assunto abruptamente. Não sejas parvo, tenho mais em que pensar e mais que fazer. Não que José quisesse muito ter outra mulher na cama. Mas a conversa agradava-lhe. A Maria, não. Por isso levantou-se da cama e fechou-se na casa de banho, batendo a porta com força. José ficou a pensar que devia tentar falar de política e de religião durante o acto, assim a quente, quando ela menos esperasse, como quem espeta um ferro no dorso ensanguentado de um touro enraivecido. Não pares agora que estou quase a vir-me, imploraria Maria. Fode-me toda, diria ele como quem lembra a uma actriz distraída o que deve dizer a seguir. Sim, pois, isso, fode-me toda, gritaria ela. E ele, enquanto o ferro ia e vinha e a tourada estava no auge, lá diria, como quem não quer a coisa: Então o cabrão do Cavaco lá ganhou esta merda!
1 comment:
muito bom!
fez-me lembrar o saramago, o que quer dizer que gostei muito.
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