Há poucos dias vi num desses templos de consumismo da cultura ocidental, duas mulheres muçulmanas, com o rosto completamente coberto, apenas com os olhos à vista, provavelmente para não irem contra às montras. Eu bem sei que vivo no ocidente, na era da pós-modernidade e do laissez-faire demo-liberal, mas mentiria se dissesse que me foi indiferente aquilo que vi, ou que senti uma vontade tremenda, de que muito me orgulho, de ser culturalmente tolerante.
A tolerância tem hoje dois discursos que a defendem ou julgam defender. O primeiro diz-nos que a superioridade do ocidente reside na sua capacidade de tolerância e, nesse caso, estas duas mulheres de véu, estariam a usufruir da liberdade ocidental e da nossa infinita capacidade de tolerância, o outro discurso, o da tolerância pós-moderna, recusa a ideia de superioridade cultural seja de quem for, e delicia-se com estas senhoras de véu, porque elas são a marca da multiplicidade e da diversidade. Claro que ambos estes discursos são falsos porque se baseiam em dois equívocos. O primeiro imagina que a cultura ocidental não precisa de se defender das outras culturas e que a nossa superioridade não foi ela própria, e ainda bem que o foi, um exercício autoritário de arrogância cultural. O segundo parte do princípio, igualmente erróneo, que as culturas são todas iguais e que se as mulheres, por exemplo, no ocidente, acharam que descobriram a salvação no clítoris, outras mulheres de outras culturas, têm todo o direito de deixar e querer que o mesmo lhes seja retirado. A estupidez cultural é universal, e ser pós-moderno é sabê-lo e ser feliz. Se no ocidente as mulheres podem usar meias de renda, cuequinha fio dental, decotes pronunciados, calças justas, cabelo vermelho, piercing no nariz, tatuagem no peito, porque raio não podem as mulheres muçulmanas usar véu, e cobrir o rosto, para além de todo o corpo, e o cabelo, e nunca consegui perceber porque não cobrem as mãos, essas pecaminosas e sedutoras agentes do toque e da perdição. O que distingue realmente a cultura ocidental das outras culturas, se alguma coisa a distingue, e se não queremos cair na falácia do relativismo pós-moderno, é a capacidade do indivíduo se colocar acima, dentro do possível evidentemente, e sempre correndo o risco da ilusão, da sua cultura. O que distingue a cultura ocidental é o sentido crítico, o facto de ter sido aqui que se criou a ideia de crítica cultural, e portanto de progresso e, se quisermos, de recusa de si próprio. É essa recusa de si próprio, essa busca da superação e da emancipação que criou a singularidade ocidental. Numa palavra, a liberdade. Mas não uma liberdade neutra, como a que hoje se cultiva, defende, e se tenta fazer passar como a única liberdade possível e desejável. Não, não essa, mas uma liberdade emancipativa e igualitária. É esta palavra, hoje tão fora de moda, a emancipação, que estraga tudo, que borra a pintura pós-moderna.
Aquelas mulheres de véu não são apenas a presença entre nós da diversidade cultural (ou são-no quando mandamos às urtigas, como fazemos hoje, as ideias de emancipação e de igualdade, ficando apenas com um vago mito de liberdade, desfigurado, falso e criminoso), aquelas mulheres são a defesa e a exaltação, in the flesh, de uma cultura de opressão e de silenciamento das mulheres e da sua sexualidade, da sua liberdade, do seu direito de se reinventarem, de não seguirem a norma, de não serem apenas o que delas se espera e quer, de poderem escolher por si próprias. Aquelas mulheres são um manifesto político de carne e osso contra a emancipação cultural e a liberdade, contra o direito à diferença e contra a diversidade, que na sua patética ingenuidade, alguns imaginam que elas simbolizam. Aquelas mulheres são para mim uma ofensa cultural, contra à qual eu quero ter o direito a ser protegido e são a negação de uma cultura, a minha, que eu quero que tenha o direito de se defender. Claro que precisamos de diálogo cultural, claro que precisamos de intercâmbio, claro que precisamos de compreensão, claro que precisamos de conhecimento mútuo e claro que precisamos de respeito. Mas isso não nos deve levar a ter que aceitar passivamente aquilo que viola e ofende a nossa dignidade e a nossa liberdade. Todas as sociedades são etnocêntricas. O ocidente não é excepção. Mas não queiramos abolir em absoluto o nosso direito ao etnocentrismo. O ocidente só terá alguma coisa a oferecer ao mundo se se afirmar como um projecto cultural de liberdade, igualdade e emancipação. E emancipação, o que implica a luta contra a ignorância, contra a opressão, contra a exploração, essa tríade sagrada que, entre outras não menos maléficas criações, inventou o véu.