O nosso maior trauma

Nunca é tarde para se ter uma infância feliz, diz o Jorge Palma numa canção. Valorizamos demais a infância. Transformámo-la numa obsessão. A psicanálise freudiana centrou-nos nela. Hemingway dizia que um escritor deveria ter tido uma infância terrível ou, se a não tivesse tido, deveria inventá-la. Transformámos a infância na mais importante idade das nossas idades. A primordial, a decisiva, a verdadeiramente marcante e traumatizante. Ela tornou-se o lugar de todos os dramas, de todos os medos, de todos os fantasmas. É a ela, dizem-nos, que temos que voltar para resolver os nossos mais profundos traumas que nela em nós se teriam enraizado. A infância tornou-se um lugar perigoso. A criança é um perverso polimorfo, lembrava Freud. A infância era o limbo de onde tínhamos de sair. Um paraíso que escondia um inferno. Um inferno que só ilusoriamente parecia um paraíso. Era lá que tudo acontecia. Era lá que estavamos expostos aos maiores perigos. O reino da inocência tornava-se num cruel mundo de perversões e escorregadias seduções. Édipo espreitava-nos. O desejo incestuoso da mãe ou do pai. O impulso homicida alimentado pelo ciúme familiar. A criança tornou-se um fantasma obscuro, um submundo negro povoado por terrores e perversões. Contraponto doentio da pureza infantil. Insensatos, transformámos a infância no lugar de origem dos nossos mais profundos males. E essa infância que perdemos e que estupidamente entregámos às maquinações nocturnas do mal em silêncio vingou-se de nós. Talvez nenhum trauma realmente profundo, excepto em casos excepcionais, tenha tido origem nessa malfadada infância, mas ao imaginarmos que sim, acabámos por a transformar no nosso maior trauma.

1 comment:

Rita said...

Não sei se fui eu que inventei os meus "traumas" de infância ou se os inventaram por mim e eu os tomei como meus.

Certo tenho o facto de os processos de (re)construção de memórias serem, em termos clínicos, resultado da interacção entre duas ou mais pessoas, o que não me conduz a conclusão nenhuma.

Poderia ficar sozinha, o resto de minha vida, sentada, a olhar para uma parede, sem que nada se alterasse, ou não.

Novamente não conclusivo...

Imagino que se acordar e me deitar e respirar todos os dias sobre a "ideia" de que fui feliz nessa altura da minha vida e que o que hoje sou não depende em nada das minhas vivências desse período, então serei, pelo menos, uma adulta mais responsável e centrada na hipótese da felicidade.

Talvez...