Do egoísmo e outros demónios

Ainda não percebi se sou egoista ou se vivo demasiado fechado dentro de mim. Talvez as duas coisas sejam formas de egoismo. Porque há egoistas que o são porque não gostam das outras pessoas, e há egoistas que o são porque não gostam suficientemente de si próprios. Creio que estou mais próximo dos últimos. Melhor assim. Sempre posso ter a esperança de vir a gostar um pouco mais de mim, e aprendendo a gostar, ser menos egoista, e gostar ainda mais dos outros.

Da arte de escrever

Mas vou dizer-te qual é o segredo, e não contes a ninguém:
- escreve sempre, sempre, mesmo quando não tiveres papel. Escreve pensando. Escreve na cabeça. Escreve todos os dias. Não aproveites tudo o que escreves. Escreve, escreve, escreve, sem objectivo nenhum. Se queres pensar, escreve. Vicia-te na escrita como na água, na comida, no tabaco.
Depois, vais ouvir a música que tu queres ouvir, porque só tu sabes qual é a tua, a que o teu ouvido quer ouvir.
Sei que não ajudei. Mas é mais ou menos assim.

Isabela

Como um gesto de ternura

Gostava de escrever com música. Que houvesse uma música qualquer nas minhas palavras. Que a folha branca fosse uma pauta na qual disponho as notas, agora palavras. Gostava que quem me lesse ouvisse a música. Uma música suave, longínqua, quase inaudível. Imagino que é isso que procuro quando escrevo. Uma música qualquer que me ajude a continuar. Que me ensine a escolher as palavras certas. Gostava que essa música surgisse devagar, ao ritmo da escrita, na melodia da leitura. Que se instalasse de forma imperceptível. Que diluísse quem escreve, que entrasse no sangue de quem lê. Suave, como um gesto de ternura.

Alice do cabelo aos caracóis


Alice em pequena tinha os cabelos aos caracóis. A mãe penteava-a com persistência. Que cabelo encaracolado é cabelo despenteado. Alice sofria. Gritava. Às vezes chorava. Aquelas manhãs eram uma tortura. Mas a criança havia de ir penteada para a escola. Que isto uma filha é a cara da mãe. E o cabelo da mãe era quase liso. Fora ondulado na infância, mas as ondas acalmaram-se pelo abuso do pente. A mãe da mãe de Alice também se chamava Alice. E nas poucas fotografias que dela havia, Alice nunca a chegou a conhecer, a senhora, mesmo já de idade, tinha ainda um cabelo farto, todo aos caracóis. Alice tinha a quem sair. Saía à outra Alice. A avó que não conheceu. Hoje Alice tem o cabelo apenas ondulado, como a mãe tinha em criança. Os caracóis perderam-se com a infância e Alice hoje só os reencontra em velhas fotografias. Suas e da avó que nunca conheceu.

Virtude

A maior virtude de uma pessoa virtuosa não é ter poucos defeitos, mas saber que tem muitos.

Diferença e repetição

Tudo em mim é imitação, ou pouco mais do que isso. Vou imitando, melhor ou pior, e melhor ou pior imaginando que sou original. E afinal os passos que dou, já por outros foram dados. E as palavras que digo, tantas vezes já foram ouvidas. O que de novo trazemos ao mundo não é tanto isso que imaginamos trazer mas o imaginarmos que alguma coisa de novo trazemos. E afinal até nisso somos iguais a todos os mais, que não sabendo que repetem, fazem outra vez como se a primeira fora.