Abstenção
O problema não é a forma nem o conteúdo das perguntas, nem a natureza do problema em questão. O problema é que a democracia semi-directa em Portugal não funciona. Num referendo, de uma forma ou de outra, acabam por estar em causa ideias e acaba-se, melhor ou pior, a discutir ideias, muitas vezes transversais às clivagens políticas tradicionais. Os processos eleitorais clássicos, em que vários partidos se digladiam entre si, estão muito mais próximos da grande paixão do nosso povo, o futebol. Os portugueses não têm propriamente partido, têm clube, daí ser tão difícil em Portugal alguém mudar o sentido do seu voto, a não ser que valores mais altos se levantem, o que no fundo não é muito diferente do jogador X que jogava no clube Y, mas agora joga no clube Z porque este lhe paga melhor. Além do mais o actual marqueting político substituiu, com sucesso, a discussão de ideias pelo mero confronto de clichés, que acabam por não estar muito longe dos incentivos futebolísticos: “Força Benfica!” e outras variantes. Acresce a isto que se os portugueses já fazem o esforço, e não é esforço pequeno, de eleger representantes de partidos políticos para o Parlamento e para a governação do país, é para que estes decidam por eles o que se deve ou não fazer, e não para que venham com ideias surreais como esta de permitir que sejam os próprios eleitores a decidir e a escolher livremente o que deve ou não ser feito. Cada macaco no seu galho e se os portugueses não se dedicaram à politica não lhes deve ser exigido que de vez em quando sejam políticos. A política é para os políticos, eles que decidam que os eleitores cá estão para criticar qualquer que seja a decisão, mas sermos nós a decidir, era só o que faltava!
Têm por isso razão os que dizem que a abstenção neste referendo sobre o desmancho, tradição bem enraizada neste país de brandos costumes, se deve, entre outros motivos, ao facto dos eleitores considerarem que o assunto deveria ser resolvido pelos políticos no Parlamento. Afinal foi para isso mesmo que foram eleitos. Lá decidir que clube deve ou não estar representado no Parlamento, ainda vá, agora sermos nós próprios políticos, isso já é outra conversa, assim nem valia à pena ter Parlamento. A democracia em que vivemos, para quem não sabe, designa-se democracia representativa, ou seja, os eleitos são eleitos para representar os eleitores, para pensar por eles, questionar por eles, decidir por eles, governar por eles. E isso até agora os portugueses sempre têm conseguido. Três referendos com resultados não vinculativos é mais do que prova suficiente de que estes delírios de democracia semi-directa não funcionam em Portugal. É verdade que quem ouve um português falar pode ficar com a ideia de que se fosse ele a mandar, maneira que os portugueses têm de designar a governação, os problemas eram todos resolvidos e não havia cá abusos e desleixos, mas essa é só uma maneira de falar. Quem não nos conhecer, que nos compre.