O Fim da Utopia

Do you begin to see then, what kind of world we are creating? It is the exact opposite of the stupid hedonistic Utopias that the old reformers imagined. A world of fear and treachery and torment, a world of trampling and being trampled upon, a world which will grow not less but more merciless as it refines itself.

(George Orwell, Nineteen Eighty-Four)

Antropologia das religiões

Católicos e Católicos

Alice IV

Alice, que sei eu de ti? Que sabemos nós uns dos outros? Se somos estranhos a sós connosco próprios. De nós próprios desconhecidos. Que posso, afinal, eu saber? Que pode o criador saber da criatura? Se é que fui eu quem te criou. Se não és afinal tu quem me cria nestas poucas e vagas linhas que escrevo e onde imagino percorrer o teu corpo, tocar a tua alma. Que sei eu, Alice? Que sei eu dos recônditos mais secretos do teu ser? Que posso eu saber de tudo aquilo que não me dizes porque nem a ti própria o sabes dizer? Que posso eu saber, Alice, senão o pouco que adivinho, que invento, que procuro intuir? Que posso eu saber senão o que de mim em ti encontro, espelho onde revejo aquilo que sou, ou ser imagino? E sabemos tão pouco sobre nós próprios. Somos a sombra do que conseguimos decifrar, o abismo onde se reflecte a luz que dentro de nós queima, alimenta e ilumina a vida, e talvez a apague, um dia, sem querer, sem ser possível evitar o ocaso prometido. É por dentro disso que vivemos. É por dentro de nós que somos o pouco que vamos sabendo ser. A vida nem outra coisa é, senão esses passos incertos no nevoeiro que nos protege e esconde, revela e dissolve, projecta e castra, cria e evapora. O ser é apenas a aparência de tudo o que existe. Não somos o céu que nos cativa nem a terra que nos prende. Somos alguma coisa de intermédio revelada pelo intervalo entre a aparência e a ilusão. A concretude abstracta do vazio. A abstracção concreta do pleno. O voo raso do pássaro solitário, à procura de ninho. Que sabemos nós, Alice? Que sabemos do pouco que somos e do tanto que nos ultrapassa? Sabemos apenas isso. Que estamos incertos no tempo. Ancorados no espaço. Perdidos na soma dos dois. Abrigados pela divisão multiplicadora do seu desencontro. Tenho vontade de rir, Alice. Faz-me cócegas pensar. O homem pensa, Deus ri, diz um velho provérbio. E sempre erradamente tendemos a pensar que o pensamento é inútil, que é um devaneio supérfluo que se perde na indiferença do riso divino. Quando pensar é afinal a nossa forma de rir. Tal como esse riso cósmico que criou tudo o que existe é o pensamento a pensar-se a si próprio. Deus é um filósofo que nunca soube ao certo o que fazia. Igual a nós. Vadio dos mares e das estrelas e dos caminhos improváveis do amor e da imaginação. O seu riso ecoa no nosso pensar como o nosso pensamento se dissolve no seu riso. Tu és a minha filha muito amada, em ti pus toda a minha alegria, pensa-me até ao limite do pensável, e sorri-me.

O bairro nos teus olhos


I
O meu nome é Alice. Nasci num bairro periférico e abandonado. Social, era o nome que lhe davam. É nele que vivo ainda. Estou a começar um curso superior que não sei para que me vai servir e gasto os últimos tostões de um subsídio de desemprego que está a acabar. Depois não sei o que farei. Provavelmente desistirei do curso ou deixarei a meio o que talvez não valha a pena concluir. A vida por aqui é sempre igual. Este bairro não vem no mapa, menos ainda em qualquer guia turístico. Dele só se fala quando alguém por aqui perde as estribeiras e se deixa levar pela violência surda que por aqui constantemente se ouve. O mais das vezes o bairro não existe. Ou existe apenas para os que nele vivem. Não é que eu desgoste disto. Não me entendam mal. Sinto-me segura e protegida neste bairro. Por estúpido que isso pareça. Foi o lugar onde nasci e onde cresci.

II
Isto já foi melhor do que é agora. Quando ainda não havia esta gente de outras cores, de outras raças, de outras terras. Não é que eu seja racista. Mas não é preciso muito para ver que são eles que dão má fama ao bairro. Eu até tenho amigos de outras raças. Mas esses portam-se bem. Fossem todos como eles e o bairro seria uma maravilha. É verdade que há pessoas boas e más em todo o lado. Mas antes o bairro não era assim. E só havia pessoas da nossa cor, da nossa raça e da nossa terra. Pode ser que uma coisa não tenha nada a ver com a outra. Mas parece-me difícil acreditar. Talvez seja da idade. Os jovens têm outra visão. São mais abertos, liberais, tolerantes. E por isso deixam estragar o que levou tanto tempo a construir. Dizem que o futuro é deles, que a eles pertence. Que futuro venha a ser esse é que eu não sei.

III
A vida não devia ser assim. Mas é. E não parece que haja nada a fazer. É aguentar e esperar pela pancada. E a pancada acaba sempre por chegar. Mais tarde ou mais cedo. Se não formos nós a fazer por nós ninguém fará. Tenho uma reforma que mal me chega ao fim do mês. O que me vale é que a minha mulher tem outra. Ainda mais baixa que a minha, é verdade, mas sempre é uma ajuda. Faço uns biscates, de vez em quando, que nem sempre há. O meu mal é não vender essas coisas que há por aí quem venda. Bom negócio esse, ao que parece. E que dá para acumular com outro tipo de ajudas. Eu sei que tu sabes o que eu sei que tu sabes que eu não sei. Faz de conta que não viste nada. Se perguntarem, eu nego tudo. Porque haveria eu de confessar? Tomais-me por parvo? Há por aí tanta gente que faz o mesmo. Isto é um produto. Apenas isso. Um produto. E pelos vistos há quem goste e há quem queira. E temos que respeitar o consumidor. E alimentar o consumo. E o trabalho que isso dá. Induzir novos hábitos, atrair novos clientes, fidelizar os antigos. O que vale é que com o tempo eles vão ficando menos exigentes. Já não ligam à qualidade do produto nem discutem o preço. Melhor assim. Morrem jovens, alguns. E isso é um bocado chato. São clientes que se perdem. Mas há sempre malta nova que quer entrar. Há sempre malta à porta.

IV
Se eu não fosse maluco contava-vos uma história. E se vossas excelências não soubessem que eu sou maluco talvez até acreditassem nela. Eu nasci neste bairro vai para mais de não sei quantos anos, que os malucos não são lá muito bons a fazer contas. Vivo numa casa degradada, mas não me queixo. Não preciso de muito mais. Eu a mim tanto me faz. Já estou por tudo. Se quiserem assim, eu faço assim. Se preferem assado, também se arranja. A malta aqui já me conhece e trata-me mal. Mas a mim isso pouco me importa. Desde que não me dêem pontapés, podem-me chamar tudo. Agora com a idade até estou a ficar meio surdo. Logo digam o que disserem, esse é o lado para o qual durmo melhor. Mas normalmente durmo de barriga para cima. E fico a olhar para o tecto. Olhos abertos, noite dentro. Quem me visse assim imaginaria que penso em alguma coisa. Mas garanto-vos que não penso em nada. Ou melhor, penso. Penso que se morresse ninguém daria por nada e poucos lamentariam. Talvez as crianças do bairro sentissem a minha falta. Depois seria como ir ao circo e não ver o palhaço. Mas se eu não fosse maluco, eu contava-vos uma história. E depois vossas excelências fariam o favor de acreditar nela. Ou não?

V
Eu qualquer dia pego mas é numa mão cheia de tinta e dou uma de mão nesta merda. Isto assim como está não tem ponta por onde se lhe pegue. E pensar que a maior parte da malta que vive neste bairro trabalha nas obras. Em casa de ferreiro, espeto de pau, como se costuma dizer. Se quem devia fazer, não faz, porque não o havemos nós de o fazer? Não vem a montanha ao Moamé, vai o gajo à montanha. Que um homem não é de ferro e muita sorte já é estar vivo. Já combinei ali com o tio Manecas e qualquer dia metemos mãos à obra. Quero ver depois quem é que nos vai impedir. Somos velhos, mas ainda estamos rijos. E isto já se sabe, os amigos são para as ocasiões. O Manecas pinta o meu prédio e eu pinto o dele. Pode ser que a coisa pegue. Mas tenho cá para mim que esta malta gosta é de viver assim. Cuspir no chão, mijar na rua e atirar lixo pela janela. E como de boas intenções está o inferno cheio vou mas é poupar na tinta que o dinheiro já quase me não chega para a pinga.