Não consigo escrever, pensou ela
Não consigo escrever, pensou ela. Faltam-me as palavras, as ideias, os gestos. Faltam-me as certezas. As imponderadas convicções. A inexplicável fé. Não consigo escrever, pensou ela. Arrasto palavras, iludo sentidos, brinco com metáforas frágeis e inconsistentes. Não consigo escrever, pensou ela. Enquanto observava a aranha, que no tecto do quarto, com indelével precisão, construía a sua teia. Ainda pensou levantar-se para a matar e destruir a armadilha fatal a que essa mosca nocturna e importuna que insistia em incomodá-la não iria provavelmente escapar. Mas deixou-se ficar. Sentada na cama. Caneta erguida na mão direita, suspensa no ar, caderno aberto sobre as pernas. Escreve à mão ainda sempre que pode. Mas agora não consegue. Não pode. Não sabe. Não consigo escrever, disse ela. Disse e não apenas pensou. Articulou levemente com os lábios as palavras pensadas. Não consigo escrever. Não diz não sabe, não quer, não pode. Diz apenas isso que é o que acontece agora e que é a única coisa que importa. O verdadeiro problema a resolver. Não consigo escrever. E pensa nesses tempos outros em que seria fácil arranjar desculpas e justificações para a sua momentânea paralisia escritiva. As mulheres não escrevem. As mulheres não pintam. As mulheres não pensam. As mulheres não falam. As mulheres não sonham sequer. Antes alimentam os sonhos dos verdadeiros detentores da faculdade de sonhar. De falar. De pensar. De pintar. De escrever. Não consigo escrever, pensou ela. E talvez no fim de contas fosse mais fácil nesses tempos outros. Mesmo assinando com nome masculino. Porque os homens, esses sim, podem escrever, e pintar, e pensar, e falar, e sonhar, e viver, e amar, e dominar, e controlar, e silenciar, e até matar. Não consigo escrever, pensava ela. Tendo deixado o corpo cair sobre a cama, o caderno escorregado para o chão, a caneta ainda segura na mão direita, suspensa no ar. Como uma arma.