Alice, coelhos e relógios

Tenho saudades da Alice, pensava o coelho, enquanto olhava para o relógio, mais pela força do hábito do que por estar atrasado, pois não tinha que ir a nenhum lado, ou por esperar alguém. Ela costumava cá vir, descer à caverna, passava horas comigo, por vezes fazia de conta que não estava, e talvez não estivesse mesmo, mas eu fazia ainda mais de conta do que ela que ela estava onde fingia não estar. Mas agora não tem resultado, mesmo que eu finja que ela ainda está, ela já não está. Nem sequer se despediu, Alice. Um dia estava e no outro já não. Como se a sua ausência fosse tão natural como a sua presença. Um dia eu apago-me, mas continuarei aqui, perto de ti, porque um dia aqui estive, e por isso estarei mesmo quando já não estiver, e onde tu estás eu também estou, mesmo que tu já lá não estejas. Por vezes ainda vou ao lugar onde a encontrei. Ou melhor seria dizer ao lugar onde ela me encontrou. Porque foi ela que me seguiu, que desceu a toca, que se perdeu comigo no escuro anterior ao mundo que a terra guarda dentro de si.

O meu relógio avariou-se, parou, os ponteiros já não fazem sentido, perderam o norte, naufragam perdidos no labirinto das horas. A Duquesa bem pode esperar. Talvez até já se tenha cansado de esperar. Talvez este já nem seja o tempo da espera. Mary Ann sorri para mim, canta-me canções de amor, diz-me que os coelhos ainda têm futuro e que a Rainha de Copas vai perder a guerra. Mais tarde ou mais cedo.

Diz-me, Alice, diz-me como pode um pobre e simples coelho vencer uma guerra tão fria sem o calor da tua presença? Quem me dera que estivesses aqui (ainda).

Barbeiro, queda de cabelo e agrião

Há algo de estranho nos barbeiros. São criaturas que falam demais. Não conseguem estar calados. Contam vidas, espalham notícias, alimentam boatos, resolvem enigmas, lançam desafios. O barbeiro não é apenas alguém que corta cabelos e faz barbas. Um barbeiro é um meio de comunicação pré-moderno. Este agora fala da vida do vizinho do lado com a segurança de quem conhece a vida de toda a gente. São anos de prática e de dedicação.

Então, como é que quer isto?
Pode ser à máquina. Pente dois.
Pente dois? Olhe que é muito curto!
Não faz mal. Pode ser.
Se é assim que quer… Cá vai disto!

Ele continua. Fala do relato de futebol. Dos comentadores. Dos falsos sinais dados pelo relator: é golo, é golo, é agora, é agora, vai, vai, e sei lá que mais, e nunca é. Estes gajos são uns aldrabões. De repente, é golo. É mesmo golo. Olha o cabrão agora acertou. Disse que era golo e foi mesmo. Há um cliente que entra. É já velho. Sei depois que está reformado e que a mulher sofre de Parkinson não podendo ficar muito tempo sozinha em casa. Há uma mulher que lhe faz companhia. O velho quer saber se o barbeiro lhe pode cortar o cabelo em meia hora. Não espera pela resposta. Sai e diz que já volta. O barbeiro lamenta-se. Este gajo, mora aqui ao lado, está reformado, e é sempre a esta hora que vem cortar o cabelo, que não se pode demorar, que a mulher está sozinha. Então mas não há uma mulher que lhe faz companhia? Há, responde o velho, mas já saiu. Já saiu! E o cabrão do velho agora é que quer vir cortar o cabelo. A tarde toda para o fazer e só se lembra de vir quando a mulher já está sozinha em casa. Tem lá aquela doença. Não pode ficar muito tempo sem ninguém. Consegue fazer isto em meia hora ou não? Eu conseguir, consigo. Consigo cortar-lhe o cabelo. A meia hora é que já não garanto. Ainda por cima o cabelo dele parece palha-de-aço, e é farto, o velho tem cabelo por todo o lado. Podia-lhe dar um bocado a si, diz-me ele.

Essa sua queda de cabelo… Sabe o que é bom para isso… Agrião.
Agrião?
Exactamente, agrião. Pega numa mão-cheia deles e esfrega na cabeça. Vai ver que resulta.

Põe o espelho por detrás da minha cabeça. Pergunta se está bom. Eu digo que sim. Ele acrescenta, pouco convencido: assim, está bom assim, todo cheio de ondulações?

Está com pressa?
Não.
Tinha aqui o recorte sobre os agriões.

É só um bocadinho. Estava para aqui. É para ver que eu não estou a mentir. O agrião é bom. E o alho também. Um gajo depois fica é a cheirar a alho!

Eu leio a notícia. Confirmo que é verdade o que ele diz. Embora a notícia só fale em comer agrião. Não diz nada sobre essa ideia de esfregar a cabeça com agrião. Menos ainda fala de alho. Mas se ele o diz, quem sou eu para duvidar!

Curioso. Não sabia.
É verdade. É verdade. Você não gosta de agrião?
Gosto.
Pois então coma! Eu é sempre. Quando dou pela queda de cabelo, vou logo comer agrião. Normalmente, na salada. Mas, às vezes, agarro naquilo à mão-cheia e vai tudo para a boca, mesmo assim a lavrador.

Ele vem até à porta. Acompanha-me à saída. Volta a recomendar o agrião. Coma muito, coma muito agrião. Fica a olhar para mim. Parece perseguir-me. Há algo de sinistro naquele sorriso. Afasto-me devagar, e penso, em silêncio: Tenho que mudar de barbeiro.