Do egoísmo e outros demónios

Ainda não percebi se sou egoista ou se vivo demasiado fechado dentro de mim. Talvez as duas coisas sejam formas de egoismo. Porque há egoistas que o são porque não gostam das outras pessoas, e há egoistas que o são porque não gostam suficientemente de si próprios. Creio que estou mais próximo dos últimos. Melhor assim. Sempre posso ter a esperança de vir a gostar um pouco mais de mim, e aprendendo a gostar, ser menos egoista, e gostar ainda mais dos outros.

Da arte de escrever

Mas vou dizer-te qual é o segredo, e não contes a ninguém:
- escreve sempre, sempre, mesmo quando não tiveres papel. Escreve pensando. Escreve na cabeça. Escreve todos os dias. Não aproveites tudo o que escreves. Escreve, escreve, escreve, sem objectivo nenhum. Se queres pensar, escreve. Vicia-te na escrita como na água, na comida, no tabaco.
Depois, vais ouvir a música que tu queres ouvir, porque só tu sabes qual é a tua, a que o teu ouvido quer ouvir.
Sei que não ajudei. Mas é mais ou menos assim.

Isabela

Como um gesto de ternura

Gostava de escrever com música. Que houvesse uma música qualquer nas minhas palavras. Que a folha branca fosse uma pauta na qual disponho as notas, agora palavras. Gostava que quem me lesse ouvisse a música. Uma música suave, longínqua, quase inaudível. Imagino que é isso que procuro quando escrevo. Uma música qualquer que me ajude a continuar. Que me ensine a escolher as palavras certas. Gostava que essa música surgisse devagar, ao ritmo da escrita, na melodia da leitura. Que se instalasse de forma imperceptível. Que diluísse quem escreve, que entrasse no sangue de quem lê. Suave, como um gesto de ternura.

Alice do cabelo aos caracóis


Alice em pequena tinha os cabelos aos caracóis. A mãe penteava-a com persistência. Que cabelo encaracolado é cabelo despenteado. Alice sofria. Gritava. Às vezes chorava. Aquelas manhãs eram uma tortura. Mas a criança havia de ir penteada para a escola. Que isto uma filha é a cara da mãe. E o cabelo da mãe era quase liso. Fora ondulado na infância, mas as ondas acalmaram-se pelo abuso do pente. A mãe da mãe de Alice também se chamava Alice. E nas poucas fotografias que dela havia, Alice nunca a chegou a conhecer, a senhora, mesmo já de idade, tinha ainda um cabelo farto, todo aos caracóis. Alice tinha a quem sair. Saía à outra Alice. A avó que não conheceu. Hoje Alice tem o cabelo apenas ondulado, como a mãe tinha em criança. Os caracóis perderam-se com a infância e Alice hoje só os reencontra em velhas fotografias. Suas e da avó que nunca conheceu.

Virtude

A maior virtude de uma pessoa virtuosa não é ter poucos defeitos, mas saber que tem muitos.

Diferença e repetição

Tudo em mim é imitação, ou pouco mais do que isso. Vou imitando, melhor ou pior, e melhor ou pior imaginando que sou original. E afinal os passos que dou, já por outros foram dados. E as palavras que digo, tantas vezes já foram ouvidas. O que de novo trazemos ao mundo não é tanto isso que imaginamos trazer mas o imaginarmos que alguma coisa de novo trazemos. E afinal até nisso somos iguais a todos os mais, que não sabendo que repetem, fazem outra vez como se a primeira fora.

Stop

Do Partido Socialista


Ilustra a história um encantador episódio entre Mário Soares e Piteira Santos. Aquele teria perguntado a este: "Porque é que você não se inscreve no Partido Socialista?" E Piteira: "Porque sou socialista!"


PORTUGAL PASSA AO LADO
Por Baptista-Bastos
Diário de Notícias, Quarta-Feira, 16 de Maio de 2007.

Espavorido, Marques Mendes fez, há dias, uma alarmada declaração ao País: "O PS está à direita do PSD!" A coisa só pode ser grave e surpreendente para o próprio Marques Mendes, político gentil e, aparentemente, alheado da recente História pátria. O PS sempre alimentou a nossa inocência, comovendo-nos com a incessante litania da esperança. Quando os seus militantes atroavam as ruas, gritando a idílica frase "Partido Socialista, partido marxista!", ignoravam, com idêntico ardor, o exacto significado do que diziam.

Nada disto tem importância. Nunca ninguém se preocupou com os ideais, as doutrinas, os projectos do PS para Portugal. Acaso o PS não tinha nenhum. E, pelos vistos, não o tem. Aquela extasiada história do "partido marxista" foi logo removida do ABC, quando Willy Brandt recomendou a sua rápida submersão. Ávidos de "modernidade", os dirigentes do PS estabeleceram o preceito de que a melhor teoria é não ter teoria alguma.

Ilustra a história um encantador episódio entre Mário Soares e Piteira Santos. Aquele teria perguntado a este: "Porque é que você não se inscreve no Partido Socialista?" E Piteira: "Porque sou socialista!" Na realidade o PS nunca praticou, nem involuntariamente, o socialismo, justificando-se com o "pragmatismo" ou apoiando-se num enigmático "contexto histórico", de que servia de escora a "guerra fria". Os factos induzem-nos a duvidar se alguma vez houve "socialismo", por módico que fosse, em qualquer parte do planeta.

Não foi Sócrates que deu cabo do PS. Foi o PS que deu cabo da ideia que, erradamente, se fazia do PS. Sócrates regressou à "pureza inicial" do partido, como foi enternecedoramente sublinhado no jantar comemorativo da fundação. Mas Sócrates deu, também, cabo do PSD de Mendes; ou, pelo menos, ensarilhou o PSD e entalou Mendes. Este, averiguadamente desconcertado, diz o que não devia dizer e toma atitudes tão ignaras quanto absurdas. O incidente Carmona é outra parcela a juntar à soma de disparates. Ante esta rude gesta, Luís Filipe Menezes, sibilino e doce, por vezes na cintilação de leve sarcasmo, vai tecendo os fios que enredam Mendes numa trama cada vez mais inextricável.

Entretanto, a designação de António Costa para Lisboa ergue a suspeita de que Sócrates quis remover um émulo poderoso. Manigância com antecedentes: lembremo-nos das ciladas a Mário Soares e a Manuel Alegre. Maquiavel advertiu que, em política, não há moral. Sócrates não leu: mas aprendeu de ouvido.

Os limites e as confusões deste aviltamento convidam-nos a concluir que, com cavalheiros de tal porte, tudo se resume a ganhar ou a perder.

Portugal passa ao lado.

Trair

Não há nada mais perigoso do que uma pessoa que não cresceu. A inocência que não se perdeu alimenta a crueldade. As pessoas que não crescem não sabem que não crescem. Toda a sua vida é uma tentativa de esconderem de si próprias essa verdade. Enganam-se a si próprias enganando os outros. E fingem nesse engano uma maturidade que não têm. Preferem o poder ao amor. Submeter os outros ajuda-as a esquecer a sua trágica submissão. Temem a liberdade alheia. Nada os assusta mais do que uma pessoa livre. Escusado será dizer que quando aqui falo de crescimento falo de crescimento interior. Claro que a interioridade se reflecte sempre naquilo a que chamamos a vida exterior. Mas as pessoas que não cresceram investem fora de si tudo o que não têm dentro de si. Precisam de gritar ao mundo que são o que não são. Vivem de aparências e de falsas verdades. O artifício de que vivem é a sua própria morte. Perderam a alma mas não se importam. O que os assustaria verdadeiramente era ter uma. Fogem de si próprios e nessa fuga violenta atropelam os outros. O sofrimento alheio compensa-os. São actores mórbidos da sua própria ruina interior. E vivem matando a vida que perderam.

Salto falhado

I held the blade in trembling hands
Prepared to make it but just then the phone rang
I never had the nerve to make the final cut.
(Roger Waters)

Está na ponte e vai saltar. Mas há alguém que grita. E o grito ecoa pelo espaço vazio. Os carros passam demasiado depressa. Mesmo com velocidade controlada. Circulam por dentro da sua indiferença contida. Ninguém sabe quem é. Está na ponte e vai-se atirar. Imagina-se para onde vai. Para um vazio qualquer. Talvez procure outro mundo e outra vida. Há alguém que grita. Mas o grito perde-se no espaço vazio. Os carros passam demasiado depressa. Só um sorriso o poderia salvar. Mas ela ficou em outro lugar. Talvez espere por ele. E ele não sabe regressar. Alguém grita. Ele volta-se para se agarrar. Antes da queda final. As pessoas regressam a casa. Depois de mais um dia cumprido. A noite cai devagar. Mas ele cairá num ápice. O dia volta amanhã. Mas para ele não haverá regresso. Está na ponte e vai saltar. Há alguém que grita. Como se o tempo ainda pudesse parar. Os carros passam depressa. Mesmo com velocidade controlada. O coração bate a compasso. O sangue ecoa nos pulsos. O rio ficaria vermelho se agora os abrisse. Ouve-se um grito ao longe. Ele regressa devagar. Há um carro da polícia que pára. O senhor não sabe que não pode andar assim na ponte? É que eu ia saltar. Não me venha com desculpas e entre no carro. A polícia leva o homem que não saltou. Houve alguém que gritou. E o grito dissolve-se no ar. Já ninguém o ouve. Há um carro que pára no mesmo lugar de onde ele ia saltar. Isto de ter avarias na ponte é uma chatice e dá direito a multa. Há um grito que ecoa no ar. Mas este conseguimos compreender. Anda com essa merda para frente, minha besta!

Cultura de género

Entre o que os homens querem e o que os homens devem querer há uma diferença difícil de entender. Entre o que as mulheres querem e o que as mulheres devem querer há uma diferença difícil de entender. A este desvio diferencial chamamos cultura. E o resto é o quê?

O nosso maior trauma

Nunca é tarde para se ter uma infância feliz, diz o Jorge Palma numa canção. Valorizamos demais a infância. Transformámo-la numa obsessão. A psicanálise freudiana centrou-nos nela. Hemingway dizia que um escritor deveria ter tido uma infância terrível ou, se a não tivesse tido, deveria inventá-la. Transformámos a infância na mais importante idade das nossas idades. A primordial, a decisiva, a verdadeiramente marcante e traumatizante. Ela tornou-se o lugar de todos os dramas, de todos os medos, de todos os fantasmas. É a ela, dizem-nos, que temos que voltar para resolver os nossos mais profundos traumas que nela em nós se teriam enraizado. A infância tornou-se um lugar perigoso. A criança é um perverso polimorfo, lembrava Freud. A infância era o limbo de onde tínhamos de sair. Um paraíso que escondia um inferno. Um inferno que só ilusoriamente parecia um paraíso. Era lá que tudo acontecia. Era lá que estavamos expostos aos maiores perigos. O reino da inocência tornava-se num cruel mundo de perversões e escorregadias seduções. Édipo espreitava-nos. O desejo incestuoso da mãe ou do pai. O impulso homicida alimentado pelo ciúme familiar. A criança tornou-se um fantasma obscuro, um submundo negro povoado por terrores e perversões. Contraponto doentio da pureza infantil. Insensatos, transformámos a infância no lugar de origem dos nossos mais profundos males. E essa infância que perdemos e que estupidamente entregámos às maquinações nocturnas do mal em silêncio vingou-se de nós. Talvez nenhum trauma realmente profundo, excepto em casos excepcionais, tenha tido origem nessa malfadada infância, mas ao imaginarmos que sim, acabámos por a transformar no nosso maior trauma.

A origem do mal

No caso da rapariga curda, barbaramente assassinada por um bando de criminosos, por se ter apaixonado por um rapaz de outra religião, foi a rapariga que teve que morrer. Das duas, uma. Ou o outro lado é mais humano e civilizado, ou em casos como este é a mulher que deve morrer. Não descartando a primeira, inclino-me mais para a segunda opção. Já no mito cristão da origem do pecado original, Deus, como castigo, submete a mulher ao homem e o homem à natureza, o que acaba por ser uma forma de naturalizar a submissão da mulher ao homem.

A cegueira liberal

A única justificação na luta contra o Estado é a luta contra o poder. Mas o poder que o Estado perde não se evapora.

O fim da cultura

Aqui, no site de notícias do google em português, a ciência tem direito a espaço próprio. A cultura, não. É procurá-la no entretenimento.

Maio, mês de Maria.


Foge comigo, Maria, para longe desta terra.

As incertezas da terceira via

Se neste teste político responderem "Not sure" a todas as perguntas o resultado é: You adhere to the Third Way. The Third Way is a fairly nebulous concept, but it rests on the idea of combining economic efficiency - i.e. a market economy with some intervention - with social responsibility. The focus is emphatically on the community as a whole, and not necessarily equality per se. Adherents of the Third Way range from moderate to conservative in their social views, and have recently been willing to take a "tough" line on a range of social issues.

Maio de 2007


Sarkozy quis "abolir" o Maio de 68, e o Maio de 68 vinga-se nos bairros sociais.

Isolacionismo

Enquanto os jovens destroem os seus próprios bairros, Sarkozy está algures no mediterrâneo no seu iate, a meditar. Será ele mesmo capaz de salvar a pureza da alma francesa?

Direita cruzada

Sarkozy ganhou as eleições em França "democratizando" o discurso da extrema-direita. O resultado nem é muito mau para o Partido Socialista que ainda pode vencer as legislativas. Mas é péssimo para o partido de Le Pen.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

Jean-Marie Le Pen, presidente da Frente Nacional, declarou hoje que conta com a consolidação de seu partido nas eleições legislativas, para fazer oposição a Sarkozy na Assembléia Nacional. "Sarkozy se encontrará frente a frente com as promessas que fez. Tenho certeza de que ele não as manterá", afirmou.

Pensamento único, expressão múltipla.

Não basta perguntar se existe liberdade de expressão. É preciso também perguntar se existe liberdade de pensamento. Uma coisa é dizer que ambas as liberdades estão ligadas, outra acreditar que uma se segue magicamente à outra.

Qualquer coisa

- Então agora são só aforismos?
- Parece que sim.
- E quando é que começas a escrever alguma coisa que se veja?
- Tenho medo da tentação de apagar.
- Não seria a primeira vez.
- Nem a última.
- Então escreve.
- Mas o quê?
- Qualquer coisa.
- E achas que qualquer coisa serve?
- Se não servir, acrescentas mais qualquer coisa e já não ficas só com qualquer coisa.
- E fico com o quê, então?
- Ficas com o que ficares.
- Bom, sempre é melhor do que qualquer coisa.
- Vais ver que até consegues qualquer coisa.

Raça, género e outras ilusões

A diferença na cor da pele é tão irrelevante como o sexo que se tem.

Indiferença

Do que precisamos não é de igualdade de género. É de indiferença de género. O que não impede que a igualdade seja o único caminho para a indiferença. E para a diferença.

A vingança da criatura

Era ateu porque achava que o Deus que tinha criado esta bodega toda não merecia existir.

Rumo ao essencial

A preocupação exacerbada com questões menores é sinal de subdesenvolvimento.

Tudo o que não apagámos

Parece que por dia no mundo se acendem milhões de blogs. Seria também interessante saber quantos por dia são apagados.

Conhecimento

Aquilo que não compreendemos não podemos conhecer. Aquilo que não tentamos compreender não conseguimos conhecer.

Ambiguidades

Diferente é uma daquelas palavras que tanto é usada num sentido positivo como negativo.

Desvios culturais

Inovação e adaptação não são a mesma coisa, embora por vezes seja difícil perceber onde uma já começou ou onde a outra ainda não acabou.

Preconceitos culturais

Dizer que gostos não se discutem é como dizer que preconceitos não se discutem.

Invisibilidade

Os nossos mais terríveis preconceitos culturais são aqueles que não conseguimos ver.

Telhados de vidro quem os não tem?

Numa coisa, ao menos, o PNR tem talvez razão. Se existem partidos comunistas, porque não existirem partidos fascistas?

O comunismo cometeu crimes. O fascismo cometeu crimes. O capitalismo também tem direito ao seu livro negro. Felizmente não existem partidos capitalistas.

Com isto tudo, nem se percebe como é possível continuar a permitir a existência do catolicismo, só para dar um exemplo.

A mensagem

As pessoas que votam no PNR estão a dar um sinal claro ao país: preferem criminosos brancos.

A questão

A questão não é saber se o PNR é ou não um partido fascista. O PNR é um partido fascista. A questão é saber se a constituição deve ou não permitir a existência de partidos fascistas?

Os novos beatos

Parece que lá pelo Brasil, por cá não dei por nada, em jornais e coisas parecidas, que por lá deve haver mais do que por cá, se fala de um suposto elogio que o Papa terá feito de Karl Marx num inacabado livro sobre Jesus, que o teólogo tem vindo a elaborar, e do qual, a parte da obra já realizada vai ser publicada este mês. Não é propriamente um elogio, senão o reconhecimento do valor do trabalho crítico e intelectual do filósofo alemão. Como já alguém disse deste Papa: ele é imensamente contraditório. Sendo essa apenas mais uma das razões que me leva, por vezes, a simpatizar com ele. Ora cai o Carmo e a Trindade, na cabeça de alguns beatos do capitalismo, pelo suposto elogio a Marx, pai do comunismo, e logo responsável por todos os crimes que em seu nome se cometeram. Na cabeça destes beatos também as críticas radicais que o Papa faz ao colonialismo e à destruição de culturas (no sentido antropológico do termo, portanto incluindo aí economia, religião, relações sociais e tudo aquilo que transforma um punhado de homens e mulheres em mundo organizado), não são aceitáveis porque o Papa se esqueceu do terrível papel da Igreja neste processo, e, se o não esqueceu, o que tinha era de pedir desculpa, à boa maneira do seu antecessor, e não atirar pedras, uma vez que tem telhados de vidro. Partindo aqui do pressuposto que criticar é atirar pedras e que há alguém que não tenha telhados de vidro.

Vamos a um exemplo. A declaração infeliz que o Papa fez sobre o Islão, é uma declaração conservadora ou progressista? Eu acho que é progressista. E pouco importa aqui que o Papa pudesse ter dito o mesmo do catolicismo e não o tenha dito. O facto da afirmação ser verdadeira para as duas religiões não impede que o seja para cada uma delas individualmente, e logo, o que o Papa disse do Islão é verdadeiro, embora possa ser apenas uma verdade parcial. Em nome de Deus, ou desta ou daquela religião, perseguiu-se, torturou-se e matou-se, segue-se, dizem os novos beatos, que tudo está errado nessas religiões ou nessas doutrinas. Para se protegerem da crítica, e para esconderem o seu próprio veneno, os novos beatos, decidem fazer aquilo que sempre fizeram, atirar fora o bebé juntamente com a água suja do banho, mas sabemos que o que desejam realmente é atirar fora o bebé e ficar com a água suja, mudando-lhe o nome e o sentido, mas mantendo o essencial, desde que sejam eles a controlar a distribuição colectiva do lixo.

Os católicos que conheço gostam muito uns dos outros e do seu catolicismo, mas não acham muita piada a padres e companhia, incluindo muitas vezes nessa companhia o próprio Papa, que normalmente quase parece um seu ódio de estimação, ódio dissimulado é certo, que os católicos que conheço, são mais ou menos especializados na arte da dissimulação nestes assuntos. Eu penso ou sinto mais ou menos ao contrário. Não tendo grande simpatia pelo catolicismo, os católicos que conheço ajudam-me ainda a ter menos, mas não desgosto de alguma inteligência que por vezes nesse obscuro mundo também se vislumbra, e tenho alguma simpatia intelectual, discordâncias à parte, com este Papa. Certamente o prefiro ao popular e beato, ainda não é, mas está para breve, João Paulo II.

Next level

O capitalismo atrai porque parece um jogo. E a inteligência média não ultrapassa os limites do jogo.

A cultura do dinheiro

Os ricos enriquecem e os pobres empobrecem. Até porque os pobres dão menos importância ao dinheiro.

Depois do sexo (ou antes)

A ideia de que o sexo está ligado à violência é tão errónea como a ideia de que o sexo está ligado à ternura e ao amor. O sexo não está ligado a nada porque o sexo não possui existência autónoma. Não é separável de nós. É a nossa imaginação, ou melhor, o pensamento que nos leva a pensar que sim. Somos nós que estamos ligados à violência e à ternura e ao amor.

Esteticamente correcto

A ética foi lentamente banida e substituída pela estética. As coisas deixaram de ser importantes e tornaram-se apenas interessantes. O bem e o mal tornaram-se relativos e os sistemas de codificação passaram para o belo e o não belo, o que fica ou não bem, o que passa ou não passa. O pensamento comunicacional substituiu o pensamento moral. Na moral o agente está substancialmente implicado, na comunicação está apenas subjectivamente. Tudo é relativo no mundo da estética. E inócuo. Tudo é permitido desde que seja aceite por maiorias mais ou menos silenciosas, mais ou menos anónimas. No mundo da estética tudo é leve e suave. No da ética tudo é pesado. A ética é um esforço de ligar pensamento e acção, a estética pretende a sua separação. No mundo da ética Deus salva Isaac. No mundo da estética Isaac mata Abraão.

Nowhere

Não é no where. É now here.

Ver a política por um canudo

Afinal, este não é um país de doutores. É um país de engenheiros. E como diria o outro, nós precisamos é de electricistas. Talvez não fosse mau ter um em primeiro-ministro. Só para variar.

O embuste

Não percebo todo este alarido em relação à licenciatura de José Sócrates. Afinal, o George W. Bush também não tem um grau acadécimo? (A propósito, o homem é coiso em quê?) E não é por isso que deixa de ser um excelente presidente dos Estados Unidos da América.

Cabeças trocadas

O mundo mudou muito. Definitivamente, o mundo mudou muito. Mas a maioria das cabeças nem se aperceberam dessa mudança. O mundo não mudou nada. Não mudou praticamente nada. As nossas cabeças é que tinham mudado. Demasiado.

Ele precisava tanto de escrever como de apagar o que escrevia. (Pedro Paixão)

Liberalismo à portuguesa

A luta contra o Estado em Portugal é trágica. De certa forma, Portugal é um país sem Estado, porque o cidadão não se sente Estado, daí que lutando contra o Estado não se sinta a lutar contra si próprio. Pior ainda, dada a realidade do país, lutando contra o Estado não está a lutar contra si próprio.

O país de Salazar

A vitória de Salazar no concurso de televisão sobre Os Grandes Portugueses - se é que tal expressão tem sentido, uma vez que é quase impossível ser-se grande num país tão pequeno como Portugal, e não me refiro à dimensão geográfica - não é estranha nem surpreendente. O Portugal de hoje não é afinal assim tão diferente do Portugal de ontem, e parece-me que tende a piorar, uma vez que iremos continuar a sentir os efeitos colaterais do país que estamos a construir. O pensamento não é valorizado, e se ontem era violentamente reprimido, hoje é subtilmente anestesiado. A repressão política directa foi afinal substituída pela repressão económica directa. E o que é a economia e o mercado senão, em si mesmos, um projecto político, ou a aplicação prática de um projecto político? Ontem não se falava com medo da prisão, hoje não se fala com medo do desemprego, pensar nunca se pensou, porque o pensamento nunca foi valorizado, não o era ontem e não o é hoje. Portugal sempre foi um país virado para a prática, mas para uma prática sem teoria, e portanto sem grandeza, a inteligência que aqui ajudou a triunfar sempre foi uma inteligência minimalista, bruta, primária. Uma apreensão directa da realidade que equivale afinal a um viver ignorante e mesquinho. Perdeu-se a aposta da educação, disse Leonor Pinhão, no pouco que vi do final do programa. E as palavras são exactas. Cada vez mais aquilo que se defende e pratica é uma educação técnica, básica, directa, prática. Defende-se a submissão das Universidades e outros centros de cultura e saber, e logo de verdadeiro progresso, à lógica curta e imediatista do mercado e do mundo empresarial e financeiro. Só o que importa é o dinheiro, o resto é paisagem. Ora dá-se o caso de o resto ser apenas o essencial. A vitória de Salazar é afinal igualmente, ainda que muitos tenham imaginado o contrário, a vitória do país em que vivemos e do país que insistimos em alimentar. Não foi tanto uma vitória da saudade, quanto uma vitória do reconhecimento. Não se entende ao certo se quem votou em Salazar votou como forma de protestar contra esta democracia à portuguesa em que vivemos, hipótese plausível se tivermos em conta que o segundo lugar foi ocupado por Álvaro Cunhal, ou se foi apenas um voto de confusão entre o Portugal de Salazar e o Portugal de hoje. O país está entregue a técnicos e engenheiros e outros especialistas em pensamento minimalista; obcecado com preocupações orçamentais; o elogio beato do trabalho regressou, alimentado pelo emprego precário e pela ameaça de desemprego; a cultura não é muita, e não sendo quase nunca valorizada, é quase sempre desvalorizada; Fátima, o fado e o futebol não foram propriamente ultrapassados, senão amplificados por novos consumos, igualmente primários, mesquinhos e estupidificantes. O país continua assim. O país parece querer continuar assim. Portugal provavelmente não terá futuro. Não é nem nunca será um grande país. Talvez não precisasse de ser tão pequeno.

A razão do vencedor ou aviso à esquerda

O que importa compreender não é como foi que a esquerda perdeu, mas como foi que a direita ganhou.

A experiência impossível

Se a experiência é tudo porque é que o meu cão não aprende a falar por mais que eu o ensine?

Recomeçar

- Então este blog acabou?
- Não sei. Parece que sim. Mas ainda cá está.
- Podias sempre apagá-lo. Como fizeste aos outros, lembras-te? Ou já perdeste o jeito?
- Não seria muito lógico apagar um blog que se chama "tudo o que não apaguei".
- É verdade. Mas a morada é "delete this blog and all entries".
- Mas agora já não preciso de apagar blogs.
- Porque é que apagaste os outros?
- Não sei ao certo. Talvez quisesse nascer de novo.
- Não é na blogosfera que se nasce de novo, suponho. E mesmo que aqui nascesses de novo seria sempre um nascimento virtual. Isto não é o mundo real.
- Não, pois não. Se calhar foi por isso que apaguei os outros blogs. Porque começava a confundir o virtual com o real.
- Deve ser uma forma qualquer de loucura essa confusão.
- Sim, deve ser. E achas que há cura?
- Há sempre cura para quem se quer curar.
- Nem sempre.
- Quase sempre.
- Há males que não têm cura.
- Não há mal que sempre dure, ouvi eu sempre dizer.
- Nem bem que nunca acabe.
- As coisas são o que são.
- Estamos bonitos! Não achas esta conversa um pouco tola?
- A culpa é tua.
- Porquê?
- Porque eu não existo.
- E eu existo?
- Até prova em contrário, parece que sim.

Abstenção

O problema não é a forma nem o conteúdo das perguntas, nem a natureza do problema em questão. O problema é que a democracia semi-directa em Portugal não funciona. Num referendo, de uma forma ou de outra, acabam por estar em causa ideias e acaba-se, melhor ou pior, a discutir ideias, muitas vezes transversais às clivagens políticas tradicionais. Os processos eleitorais clássicos, em que vários partidos se digladiam entre si, estão muito mais próximos da grande paixão do nosso povo, o futebol. Os portugueses não têm propriamente partido, têm clube, daí ser tão difícil em Portugal alguém mudar o sentido do seu voto, a não ser que valores mais altos se levantem, o que no fundo não é muito diferente do jogador X que jogava no clube Y, mas agora joga no clube Z porque este lhe paga melhor. Além do mais o actual marqueting político substituiu, com sucesso, a discussão de ideias pelo mero confronto de clichés, que acabam por não estar muito longe dos incentivos futebolísticos: “Força Benfica!” e outras variantes. Acresce a isto que se os portugueses já fazem o esforço, e não é esforço pequeno, de eleger representantes de partidos políticos para o Parlamento e para a governação do país, é para que estes decidam por eles o que se deve ou não fazer, e não para que venham com ideias surreais como esta de permitir que sejam os próprios eleitores a decidir e a escolher livremente o que deve ou não ser feito. Cada macaco no seu galho e se os portugueses não se dedicaram à politica não lhes deve ser exigido que de vez em quando sejam políticos. A política é para os políticos, eles que decidam que os eleitores cá estão para criticar qualquer que seja a decisão, mas sermos nós a decidir, era só o que faltava!

Têm por isso razão os que dizem que a abstenção neste referendo sobre o desmancho, tradição bem enraizada neste país de brandos costumes, se deve, entre outros motivos, ao facto dos eleitores considerarem que o assunto deveria ser resolvido pelos políticos no Parlamento. Afinal foi para isso mesmo que foram eleitos. Lá decidir que clube deve ou não estar representado no Parlamento, ainda vá, agora sermos nós próprios políticos, isso já é outra conversa, assim nem valia à pena ter Parlamento. A democracia em que vivemos, para quem não sabe, designa-se democracia representativa, ou seja, os eleitos são eleitos para representar os eleitores, para pensar por eles, questionar por eles, decidir por eles, governar por eles. E isso até agora os portugueses sempre têm conseguido. Três referendos com resultados não vinculativos é mais do que prova suficiente de que estes delírios de democracia semi-directa não funcionam em Portugal. É verdade que quem ouve um português falar pode ficar com a ideia de que se fosse ele a mandar, maneira que os portugueses têm de designar a governação, os problemas eram todos resolvidos e não havia cá abusos e desleixos, mas essa é só uma maneira de falar. Quem não nos conhecer, que nos compre.

O Fim da Utopia

Do you begin to see then, what kind of world we are creating? It is the exact opposite of the stupid hedonistic Utopias that the old reformers imagined. A world of fear and treachery and torment, a world of trampling and being trampled upon, a world which will grow not less but more merciless as it refines itself.

(George Orwell, Nineteen Eighty-Four)

Antropologia das religiões

Católicos e Católicos

Alice IV

Alice, que sei eu de ti? Que sabemos nós uns dos outros? Se somos estranhos a sós connosco próprios. De nós próprios desconhecidos. Que posso, afinal, eu saber? Que pode o criador saber da criatura? Se é que fui eu quem te criou. Se não és afinal tu quem me cria nestas poucas e vagas linhas que escrevo e onde imagino percorrer o teu corpo, tocar a tua alma. Que sei eu, Alice? Que sei eu dos recônditos mais secretos do teu ser? Que posso eu saber de tudo aquilo que não me dizes porque nem a ti própria o sabes dizer? Que posso eu saber, Alice, senão o pouco que adivinho, que invento, que procuro intuir? Que posso eu saber senão o que de mim em ti encontro, espelho onde revejo aquilo que sou, ou ser imagino? E sabemos tão pouco sobre nós próprios. Somos a sombra do que conseguimos decifrar, o abismo onde se reflecte a luz que dentro de nós queima, alimenta e ilumina a vida, e talvez a apague, um dia, sem querer, sem ser possível evitar o ocaso prometido. É por dentro disso que vivemos. É por dentro de nós que somos o pouco que vamos sabendo ser. A vida nem outra coisa é, senão esses passos incertos no nevoeiro que nos protege e esconde, revela e dissolve, projecta e castra, cria e evapora. O ser é apenas a aparência de tudo o que existe. Não somos o céu que nos cativa nem a terra que nos prende. Somos alguma coisa de intermédio revelada pelo intervalo entre a aparência e a ilusão. A concretude abstracta do vazio. A abstracção concreta do pleno. O voo raso do pássaro solitário, à procura de ninho. Que sabemos nós, Alice? Que sabemos do pouco que somos e do tanto que nos ultrapassa? Sabemos apenas isso. Que estamos incertos no tempo. Ancorados no espaço. Perdidos na soma dos dois. Abrigados pela divisão multiplicadora do seu desencontro. Tenho vontade de rir, Alice. Faz-me cócegas pensar. O homem pensa, Deus ri, diz um velho provérbio. E sempre erradamente tendemos a pensar que o pensamento é inútil, que é um devaneio supérfluo que se perde na indiferença do riso divino. Quando pensar é afinal a nossa forma de rir. Tal como esse riso cósmico que criou tudo o que existe é o pensamento a pensar-se a si próprio. Deus é um filósofo que nunca soube ao certo o que fazia. Igual a nós. Vadio dos mares e das estrelas e dos caminhos improváveis do amor e da imaginação. O seu riso ecoa no nosso pensar como o nosso pensamento se dissolve no seu riso. Tu és a minha filha muito amada, em ti pus toda a minha alegria, pensa-me até ao limite do pensável, e sorri-me.

O bairro nos teus olhos


I
O meu nome é Alice. Nasci num bairro periférico e abandonado. Social, era o nome que lhe davam. É nele que vivo ainda. Estou a começar um curso superior que não sei para que me vai servir e gasto os últimos tostões de um subsídio de desemprego que está a acabar. Depois não sei o que farei. Provavelmente desistirei do curso ou deixarei a meio o que talvez não valha a pena concluir. A vida por aqui é sempre igual. Este bairro não vem no mapa, menos ainda em qualquer guia turístico. Dele só se fala quando alguém por aqui perde as estribeiras e se deixa levar pela violência surda que por aqui constantemente se ouve. O mais das vezes o bairro não existe. Ou existe apenas para os que nele vivem. Não é que eu desgoste disto. Não me entendam mal. Sinto-me segura e protegida neste bairro. Por estúpido que isso pareça. Foi o lugar onde nasci e onde cresci.

II
Isto já foi melhor do que é agora. Quando ainda não havia esta gente de outras cores, de outras raças, de outras terras. Não é que eu seja racista. Mas não é preciso muito para ver que são eles que dão má fama ao bairro. Eu até tenho amigos de outras raças. Mas esses portam-se bem. Fossem todos como eles e o bairro seria uma maravilha. É verdade que há pessoas boas e más em todo o lado. Mas antes o bairro não era assim. E só havia pessoas da nossa cor, da nossa raça e da nossa terra. Pode ser que uma coisa não tenha nada a ver com a outra. Mas parece-me difícil acreditar. Talvez seja da idade. Os jovens têm outra visão. São mais abertos, liberais, tolerantes. E por isso deixam estragar o que levou tanto tempo a construir. Dizem que o futuro é deles, que a eles pertence. Que futuro venha a ser esse é que eu não sei.

III
A vida não devia ser assim. Mas é. E não parece que haja nada a fazer. É aguentar e esperar pela pancada. E a pancada acaba sempre por chegar. Mais tarde ou mais cedo. Se não formos nós a fazer por nós ninguém fará. Tenho uma reforma que mal me chega ao fim do mês. O que me vale é que a minha mulher tem outra. Ainda mais baixa que a minha, é verdade, mas sempre é uma ajuda. Faço uns biscates, de vez em quando, que nem sempre há. O meu mal é não vender essas coisas que há por aí quem venda. Bom negócio esse, ao que parece. E que dá para acumular com outro tipo de ajudas. Eu sei que tu sabes o que eu sei que tu sabes que eu não sei. Faz de conta que não viste nada. Se perguntarem, eu nego tudo. Porque haveria eu de confessar? Tomais-me por parvo? Há por aí tanta gente que faz o mesmo. Isto é um produto. Apenas isso. Um produto. E pelos vistos há quem goste e há quem queira. E temos que respeitar o consumidor. E alimentar o consumo. E o trabalho que isso dá. Induzir novos hábitos, atrair novos clientes, fidelizar os antigos. O que vale é que com o tempo eles vão ficando menos exigentes. Já não ligam à qualidade do produto nem discutem o preço. Melhor assim. Morrem jovens, alguns. E isso é um bocado chato. São clientes que se perdem. Mas há sempre malta nova que quer entrar. Há sempre malta à porta.

IV
Se eu não fosse maluco contava-vos uma história. E se vossas excelências não soubessem que eu sou maluco talvez até acreditassem nela. Eu nasci neste bairro vai para mais de não sei quantos anos, que os malucos não são lá muito bons a fazer contas. Vivo numa casa degradada, mas não me queixo. Não preciso de muito mais. Eu a mim tanto me faz. Já estou por tudo. Se quiserem assim, eu faço assim. Se preferem assado, também se arranja. A malta aqui já me conhece e trata-me mal. Mas a mim isso pouco me importa. Desde que não me dêem pontapés, podem-me chamar tudo. Agora com a idade até estou a ficar meio surdo. Logo digam o que disserem, esse é o lado para o qual durmo melhor. Mas normalmente durmo de barriga para cima. E fico a olhar para o tecto. Olhos abertos, noite dentro. Quem me visse assim imaginaria que penso em alguma coisa. Mas garanto-vos que não penso em nada. Ou melhor, penso. Penso que se morresse ninguém daria por nada e poucos lamentariam. Talvez as crianças do bairro sentissem a minha falta. Depois seria como ir ao circo e não ver o palhaço. Mas se eu não fosse maluco, eu contava-vos uma história. E depois vossas excelências fariam o favor de acreditar nela. Ou não?

V
Eu qualquer dia pego mas é numa mão cheia de tinta e dou uma de mão nesta merda. Isto assim como está não tem ponta por onde se lhe pegue. E pensar que a maior parte da malta que vive neste bairro trabalha nas obras. Em casa de ferreiro, espeto de pau, como se costuma dizer. Se quem devia fazer, não faz, porque não o havemos nós de o fazer? Não vem a montanha ao Moamé, vai o gajo à montanha. Que um homem não é de ferro e muita sorte já é estar vivo. Já combinei ali com o tio Manecas e qualquer dia metemos mãos à obra. Quero ver depois quem é que nos vai impedir. Somos velhos, mas ainda estamos rijos. E isto já se sabe, os amigos são para as ocasiões. O Manecas pinta o meu prédio e eu pinto o dele. Pode ser que a coisa pegue. Mas tenho cá para mim que esta malta gosta é de viver assim. Cuspir no chão, mijar na rua e atirar lixo pela janela. E como de boas intenções está o inferno cheio vou mas é poupar na tinta que o dinheiro já quase me não chega para a pinga.

Os artistas morrem ao sol



Os artistas morrem ao sol. Mas é um sol desconhecido. Oculto. Secreto. Que brilha nos interstícios da noite. Um sol feito de sonhos. De esperanças. De utopias. De medos. De raivas. De anseios. Um sol feito de flores e de pedras. De ruas e de becos. Sem saída, alguns. De jardins. De bancos. De vidas. De mãos. De pernas. De braços. De olhos. De bocas. De desejos. Incertos. Imprecisos. De hesitações momentâneas. De rostos. De névoa. De resgatadas horas consumidas em desertos. De cactos. De multidões. De sede. De destino. De liberdade.

Os artistas nascem de noite. No silêncio. No grito. Na tranquilidade desassossegada do tempo perdido. Reencontrado. No sangue. Por dentro de veias e de artérias. Nos teus olhos também. E nos meus. Nus. Esquecidos do que foram. Do que são. Embriagados de um futuro imprevisível. Que riscam. Traçam. Descrevem. Pintam. Na melodia imprevista da vida.

Os artistas entram e saem como se o mundo fosse a sua casa. Como se o pouco espaço que ocupam fosse o universo. Tivesse a dimensão do ser. Do estar. Do aparecer para um riso renovado. Do perder-se na vacuidade dos dias. Ressuscitados por noites de nostalgia. De força e fraqueza. De pincéis molhados em tintas de luz. De prazer. De infinito. De aqui e agora. De palavras. De tudo. De nada.

Não consigo escrever, pensou ela


Não consigo escrever, pensou ela. Faltam-me as palavras, as ideias, os gestos. Faltam-me as certezas. As imponderadas convicções. A inexplicável fé. Não consigo escrever, pensou ela. Arrasto palavras, iludo sentidos, brinco com metáforas frágeis e inconsistentes. Não consigo escrever, pensou ela. Enquanto observava a aranha, que no tecto do quarto, com indelével precisão, construía a sua teia. Ainda pensou levantar-se para a matar e destruir a armadilha fatal a que essa mosca nocturna e importuna que insistia em incomodá-la não iria provavelmente escapar. Mas deixou-se ficar. Sentada na cama. Caneta erguida na mão direita, suspensa no ar, caderno aberto sobre as pernas. Escreve à mão ainda sempre que pode. Mas agora não consegue. Não pode. Não sabe. Não consigo escrever, disse ela. Disse e não apenas pensou. Articulou levemente com os lábios as palavras pensadas. Não consigo escrever. Não diz não sabe, não quer, não pode. Diz apenas isso que é o que acontece agora e que é a única coisa que importa. O verdadeiro problema a resolver. Não consigo escrever. E pensa nesses tempos outros em que seria fácil arranjar desculpas e justificações para a sua momentânea paralisia escritiva. As mulheres não escrevem. As mulheres não pintam. As mulheres não pensam. As mulheres não falam. As mulheres não sonham sequer. Antes alimentam os sonhos dos verdadeiros detentores da faculdade de sonhar. De falar. De pensar. De pintar. De escrever. Não consigo escrever, pensou ela. E talvez no fim de contas fosse mais fácil nesses tempos outros. Mesmo assinando com nome masculino. Porque os homens, esses sim, podem escrever, e pintar, e pensar, e falar, e sonhar, e viver, e amar, e dominar, e controlar, e silenciar, e até matar. Não consigo escrever, pensava ela. Tendo deixado o corpo cair sobre a cama, o caderno escorregado para o chão, a caneta ainda segura na mão direita, suspensa no ar. Como uma arma.

O senhor Gautama


Foi debaixo de um limoeiro que o senhor Gautama alcançou a iluminação. Não sem que antes lhe tivesse caído um limão em cima da cabeça. Quando o limão caiu em cima da cabeça do senhor Gautama, ele sentiu como era amarga a vida. E mais convencido ficou quando decidiu provar o limão. Não que tenha desgostado. Era difícil ao senhor Gautama dizer, sem margem para dúvidas nem hesitações, se o sabor do limão era totalmente desagradável. Havia uma amargura qualquer, que ao principio se notava levemente, depois parecia atenuar-se, talvez o gosto se começasse a habituar ao sabor do limão, mas depois ficava sempre alguma coisa, um rasto de tristeza, um sabor meio ácido, meio amargo, que levava tempo a passar, e quando passava, pouco deixava em seu lugar, chegando mesmo o senhor Gautama a sentir saudade do estado anterior, apesar de ligeiramente desagradável, e este lhe parecer mesmo preferível do que o vazio que ficava e parecia ainda mais amargo do que a amargura desgostosa do limão. O senhor Gautama, depois de ter provado o sabor do limão, ficou indeciso. Não sabia se tinha ou não gostado. O limão amargava. Mas essa amargura tinha o seu quê de doce e de agradável. E o senhor Gautama estava a pensar se deveria comer outro limão ou se pelo contrário nunca mais deveria nem sequer lhes tocar. Isto que eu sinto, pensava para consigo o senhor Gautama, chama-se desejo, ou desejos, talvez também se possa dizer no plural, e se eu não tivesse comido o limão, talvez não me tivesse deixado dominar pelas suas contradições, mas se eu não tivesse desejado o limão não o teria comido. O desejo é um alimento do desejo. O desejo é sempre insaciável. E cá estou eu, Gautama, o pobre e fraco Gautama, debaixo de um limoeiro, agarrado ao sabor de outro limão, preso no labirinto do desejo. E tudo porque um limão me caiu em cima da cabeça. Embora se pensarmos bem, a culpa até foi minha. Quem me mandou a mim vir sentar-me debaixo de um limoeiro. No fundo, foram os meus actos que fizeram com que o limão caísse, com que a minha cabeça fosse atingida, com que o desejo se desencadeasse e com que eu ficasse com uma insuportável dor de barriga. Mas de que me queixo eu. Coisas bem piores têm acontecido e continuarão a acontecer. Tudo é sofrimento e destino e desejo. E por vezes penso que o melhor de mim ficou ali, debaixo daquele limoeiro onde perdi a inocência.

Cruzamento

Tenho as linhas da tua vida na palma da minha mão. Há um momento qualquer em que as nossas vidas se cruzam e as linhas se confundem.

I'm in love with a pop-star




Se eu ainda fosse suficientemente jovem para me apaixonar por uma pop-star (ou até para ler um livro chamado I’m in love with a pop-star), suponho que me apaixonaria pela Alanis Morissette. Mas o que é que a Alanis tem que as outras não tenham? Ou, hipótese também possível, o que é que ela não tem que as outras tenham? Em primeiro lugar, e se estamos a falar de pop, o que quer que isso seja, as letras das canções fazem sentido, o que já não é pouca coisa. Além disso, a Alanis é bonita. Quero dizer, parece humana, feita de carne e osso, e não de um qualquer material sintético, que de humano nem a aparência tem. É possível que as soft-porn-pop-stars alimentem os sonhos eróticos de alguns homens. É mesmo possível que alimentem os sonhos eróticos de todos os homens. Talvez o maior desejo sexual dos homens seja uma boneca insuflável, com vida, e com um mínimo de inteligência tão pequeno que nem se note. E nessa medida, as soft-porn-pop-stars adequam-se mais ao padrão do que a Alanis. Além de que as letras das músicas, se são músicas, que as soft-porn-pop-stars cantam são mais simples e mais lineares. Basicamente dizem que elas são podres de boas e não há quem não as queira foder. Como quem diz que um homem que se preze não pode ver uma boneca insuflável que não fique logo com tesão. E talvez seja verdade. Ou seja, talvez todas estas soft-porn-pop-stars pudessem ter uma excelente carreira na pornografia. O que não se percebe é porque é que estão na música. A não ser que seja por um falso moralismo beato, o mesmo que terá inspirado o like a virgin da rainha da pop, que lhes leva a pensar que apesar de tudo o mundo da música é mais respeitável que o mundo do porno. As porn-stars são uma espécie de prostitutas de luxo com clientes mais ou menos fixos. Mas têm tanto de actrizes como as soft-porn-pop-stars tem de músicas. Isto não significa que a Alanis não pudesse fazer porno. Até porque no hardcore tudo o que mexe é comestível. Significa apenas que as soft-porn-pop-stars não deveriam fazer música. Deviam limitar-se àquilo que sabem fazer. Se é que o sabem. Mas isto não há nada como tentar. Vão ver que até gostam. E fazem-nos o imenso favor de deixar a música para quem a merece.

Post Zen

Nunca escrevi nenhum post antes deste.

Escrito na parede

As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Aquelas que fazem parar. Que fazem pensar. Sorrir, às vezes. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Como sinais de fumo no meio da confusão. Como rasto de inteligência perdida entre a barbárie dos graffitis e das infantis declarações de amor. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Aquelas que tiram o ar. Que alimentam a revolta. Ou o sarcasmo, ao menos. Ou a ironia, se mais possível não for. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Na sua invisibilidade luminosa. No seu silêncio gritante. No seu excesso moderado. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Que ficam na memória. Que já não sabemos esquecer. Que lembramos, ao menos, de vez em quando. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. O voto é uma arma, se a usas ficas desarmado. Os nossos sonhos não cabem no tamanho das urnas. Nem submissas nem emancipadas, violentas e descontroladas. A maior arma do opressor é a cabeça do oprimido. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. No meio do Amo-te Cátia ou do Fuch the police, escrito assim, tal como está aqui, suponho que por mau domínio do inglês, mas podia ser também pudor, boa educação vinda de quem menos se espera, fuch em vez de fuck. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. No meio dos símbolos de uma revolta inconsequente, se revolta é e não apenas primitivo instinto de adolescências perdidas. As frases que os anarquistas escrevem nas paredes. Como quem resiste. Ainda. Apesar de tudo. Como quem insiste. E existe.

Queria ter palavras para te encantar

Queria ter palavras para te encantar. E saber como as usar. Conhecer os segredos impossíveis de revelar. E caminhar contigo num labirinto indecifrável que nos condenasse ao desejo suspenso do tempo e à angústia flutuante do ser. Não sei se ris com o que escrevo. Imagino-te a sorrir. Os lábios levemente rasgados. Vermelhos. Quase sangue. Na verdade, não sei o que escrevo. Nunca soube. Sou uma fraude. Deve ser isso. São fraudulentas todas as minhas palavras, falsos os meus gestos, ilusórias as minhas crenças. Minto tanto. A mim próprio me engano. Respiro conspirações improváveis, contradigo-me e perco-me em correcções que aumentam o erro e despertam o assombro silencioso da normalidade vigente. Já não escrevo a sangue. Agora passo a lâmina, mas a carne está seca. Pele e osso. E tu sorris. Como é possível continuares a sorrir? Devias saber que eu não mereço tanto. Que nunca mereci. Que tudo o que disse foi inventado. Lembrei-me da coisa na altura e achei que ficava bem. Mas falo menos agora. Escrevo menos. Leio menos. Penso menos. Sei menos. Estou seco por dentro. Como uma árvore que perdeu as raízes. Ou talvez nunca as tenha ganho. Não inventei nada, não criei nada, não fiz nada. Nem sequer pensei nada. Estou apenas aqui. À espera nem sei do quê. Ou talvez nem esteja à espera. O pouco espaço que ocupo não tem relevância nenhuma. É apenas isso. Espaço vazio e tempo morto. E tu ris. Insistes em manter esse sorriso apaziguador. Meigo como um gesto vago. Terno como um beijo leve. Mas só conheço uma forma de escrever. Esta cinzenta melancolia que me habita, domina, controla. Não sei se salva. Se apenas maltrata. Estes dias estranhos que adio na incerteza da recusa. Não devias sorrir. Devias partir para muito longe. Para um lugar onde ninguém te pudesse encontrar. Nem magoar. Nem usar. Nem deitar fora. Nem iludir. Nem enganar. Nem matar. Nem profanar. Nem amar sequer. Como vês não sei o que digo. Deixo as palavras tomarem conta de mim. Porque eu não saberia tomar conta delas. E são elas que me ensinam o pouco que sei. O quase nada que procuro. O tanto que perco, e deixo fugir, e não alcanço. Há uma loucura qualquer que me habita. Não, espera, eu reformulo. Há uma loucura qualquer que nos habita. Ou não estarias aqui. Não assim como estás. Não sorriso vermelho. Não lábios rasgados. Não dentes visíveis. Sobrepostos, alguns. E não dizes nada? Sou então apenas eu quem fala. Eu que não sei o que digo. Eu que me perco em desgostos impossíveis e em desculpas esfarrapadas. Deve haver um lugar. Sabes o que eles dizem, não sabes. Deve haver um lugar. Mas não tão belo como este. Mesmo que faça frio e nada tenha sentido. Sorriso vermelho. Lábios rasgados. Dentes visíveis. Sobrepostos, alguns.

O nome e a coisa


O Governo português está surpreendido e desagradado com o uso que o Governo venezuelano está a fazer da imagem de José Sócrates.

Entretanto, o presidente Hugo Chávez já pediu desculpa pelo facto e explicou o seu equívoco:

"Eu pensava que o homem era socialista", declarou.

florestas, espelhos e fantasmas

Contó que al primer nativo que encontraron en la Patagonia le pusieron enfrente un espejo, y que aquel gigante enardecido perdió el uso de la razón por el pavor de su propia imagen.

(Gabriel García Márquez)

#FFCC99

Deixa cá experimentar o sal mão da Rita.

It's not pink,

it's salmon.

Outro José e outra Maria

Para a Rita, porque sim.

Passado-Presente

Keep you doped with religion and sex and TV
And you think you're so clever and classless and free

John Lennon
Working-Class Hero
1970

Vodka e Valium 10

Uma vez apaguei tudo, outra queimei.

Comentário retirado daqui

A musa ou o post (im)possível

Para a L., porque guardou.
I

Gostava de ti quando sofrias muito. Gostava de ti à beira da falência. Talvez eu seja sádico. Ou apenas não queira estar tão só no meu masoquismo. Não sei ao certo. Mas sei que te ficava bem a raiva do sofrimento. Que havia uma luz estranha e sedutora nos teus olhos quando os molhavas no choro. Não sei explicar porque era tão belo ver-te sofrer. Eu sei que isto parece doentio. E talvez o seja. Mas o certo é que gostava de ti quando não tinhas direcção e a esperança parecia quase impossível. Gostava de ti quando quase mais ninguém gostava. Quando tu própria parecias não gostar de ti. Quando falavas de ódio, piscavas muito os olhos e acabavas quase sempre a chorar. Gostava de ti quando me parecias muito pequena, quase insignificante. Gostava de ti, não apesar disso, mas por causa disso. Gostava muito de ficar em silêncio enquanto choravas perdidamente. Gostava de saborear o teu sofrimento e a minha absoluta impossibilidade de o sarar. Gostava de te contemplar, como outros contemplam um Deus, demasiado humano, pregado numa cruz, a sangrar. Gostava de te admirar como quem te adorava e te queria muito. Gostava de ficar assim, sozinho, a pensar em ti e no muito que sofrias. Gostava deste gostar de ti. Afinal, gostar de ti talvez mais não seja do que uma tentativa, quem sabe se desesperada, de gostar de mim.

II

Falar de ti, apenas. Mesmo que haja coisas mais interessantes, agora não me importam. Nunca me importaram, aliás. Ou talvez tenham importado, mas agora não. Falar de ti até à exaustão. Percorrer-te com o olhar. Aprender cada gesto, cada sinal, cada pequena e inaudita hesitação. Perseguir-te com os olhos onde quer que estejas, onde quer que vás, onde quer que chegues. Estar onde o teu corpo está. Ser já parte dele. Andar por dentro de ti. Inventar-te em palavras, ideias, delírios, medos, fantasias. Contar histórias a partir de ti, começar em ti, passar por ti, acabar em ti. Olhar-te sempre. Contemplar-te. Admirar-te. Aprisionar-te. Dirás às outras mulheres com quem inventas relações que te persigo com o olhar. Elas queixar-se-ão de amantes que têm ou tiveram que só as olhavam e nada mais faziam. Tu dirás que todos os teus amantes anteriores estão mortos porque nunca te olharam. Por mais que fizessem, nunca olhavam para ti. Nunca te viam. Nunca morriam à sombra da tua imagem. Eu sou o cemitério de todos os teus amantes possíveis. E é em mim que eles ressuscitam. E te olham. E te vêem. E sabem de ti. E quando te tocam já te aprenderam antes. Mesmo quem não tem olhos te vê quando te dá a mão. E sabe.

III

Eu sei um lugar onde é possível respirar. Não há desespero nem esperança, só há um entretanto, um entrenós. Não vale a pena teres medo ou antecipar o que quer que seja. Só o sorriso compensa a espera. Tudo o mais são espaços brancos de silêncio. Não há razão para estarmos aqui. Apenas estamos. Não. Não és tu que estás a escrever. Talvez nunca tenhas sido. Mas eu nunca to quis dizer. Doía-me tirar-te a ilusão. Quem escreve sou eu. Sempre fui eu. Sou eu que sangro das mãos e não sei viver. Sou eu que me perco e te procuro. Sou eu que nunca sei ao certo e que hesito. Sou eu que estou dentro de ti e brinco com os sentidos. Porque não me recrias? Porque não me reinventas? Porque não me fazes feliz? É apenas isso que queremos. Sempre foi apenas isso que quisemos. Sempre será apenas isso que saberemos querer. Mas tu nada sabes sobre nós, pois não? Que sabes tu sobre o que é ser mulher? Não sabes nada. Nunca o soubeste. Mas eu ensino-te. Eu ensino-te tudo. Eu ensino-te tudo o que puder aprender contigo. A esperança é uma mulher. O desespero um homem. Eu tiro-te do labirinto. Não precisas ter medo. Nunca houve outro caminho nem outra solução nem outra saída. Dá-me a mão, para atravessarmos a vida. As mulheres matam, mas uma mulher salva.

Questões irrelevantes II

O que é "o caso Mateus"?

Conselho aos escritores/escritoras pósmodernos/pósmodernas

Míralo todo, sintetiza lo triste y ríete de ello. Un poco de nihilismo coherente para el día de hoy. Di la verdad con una carcajada surrealista que algunos creerán vacía. Sigue la tradición de los Vonnegut, los De Lillo y los Pynchon de este mundo, pero sin que se note; tienes que parecer un escritor poco literario, recuerda; escribes para gente que no suele leer.

Lo importante es que todo parezca un juego de estilo, algo muy sencillo.
Que no se vea el mensage; así lo leerán.

Pero no sabrán que lo han leído.

(Tony Domenech)

José e Maria

Ele e ela. Vamos dizer assim. Verdade que é uma maneira fria, impessoal, distante de o dizer. Mas pior seria, em vez de ele e ela, dizer o gajo e a gaja. E daí, talvez não. Melhor será dar-lhes nomes. João não, que é o meu nome. E daria azo a confusões que quero evitar. Ou talvez forçar. Mas isso agora não vem ao caso. Vamos chamar-lhe José, que é nome vulgar e quase tão usado como João, e tem o mesmo número de letras. E a ela chamar-lhe-emos Maria, que é também nome vulgar e por isso reduz, tal como o nome dele, a possibilidade de haver confusões. Ninguém assim pode dizer que este José de que falamos é este ou aquele José. Tanto pode ser como não ser. Josés há muitos. E Marias também. E o nome às vezes é só um engano. Que este José poderia perfeitamente dizer, se fosse pessoa dada a criar confusões, que o seu nome era João. Ou Manuel. Ou Carlos. Ou Pedro. Ou outro qualquer que lhe queiram dar ou que gostassem que ele tivesse. O certo é que mudando o nome, não mudaria a pessoa só por causa disso. E daí, nunca se sabe.

Mas este José e esta Maria é que agora nos importam. Não os outros e as outras. José tinha três amantes. Nada que pusesse em causa, ao menos em teoria, a sua relação com Maria. Eram amantes intelectuais. A política, a religião e a sexualidade. Tinha descoberto que as amava graças a Maria. Não que ele tivesse um envolvimento prático com qualquer destes três assuntos. Longe disso. Seria mais fácil tê-la Maria. Se fosse preciso fazer política, far-se-ia política, acrescentando ao mesmo tempo que de política nada se sabia. Se era preciso ser religiosa, ou fingir sê-lo, ser-se-ia, ou fingir-se-ia, e se fosse só fingido tão bem fingido seria que por verdade passaria, até para a fingidora. E o sexo, pois, então, enfim, fazia parte. Ele para a política não parecia ter muito jeito. Faltava-lhe a manha, a esperteza, o savoir-faire que a coisa parece implicar. Religioso se era, mais por dentro o seria do que por fora. E quanto ao sexo, não era coisa que perseguisse, e ele, do sexo falamos, não do José, também não o perseguia a ele, agora é ao José que nos referimos. Mas fora por causa de Maria, ou graças a ela, que descobrira que estes assuntos, se não eram a sua vida, ao menos interessavam-lhe, e muito, a um nível, por assim dizer, teórico. Eram assuntos que José não podia falar com Maria. Não porque ele fosse mudo ou ela surda, que se assim fosse de alguma forma haveriam de aprender a falar, sobre isto ou sobre aquilo, política, religião e sexo incluídos, e o que as palavras não pudessem dizer, ou porque por José, mudo, não pudessem ser pronunciadas, ou porque por Maria, surda, não pudessem ser ouvidas, ou por causa das duas coisas ao mesmo tempo, o certo é que o que essas palavras diriam, a não poderem ser ditas, por gestos se haveria de dizer. Mas o problema não era esse. Simplesmente Maria, por uma razão ou outra, ou por várias ao mesmo tempo, que é o que normalmente acontece, não se interessava por tais assuntos, chegando mesmo a evitá-los. De política, dizia nada saber. De religião, pois tinha a sua fé e não estava interessada em discuti-la. E de sexo também não falava a não ser no específico contexto da sua prática. Aí até palavrões conseguia dizer. Mas não valia. Estava fora de si. Aquilo dava a volta à cabeça de qualquer pessoa. Era preciso cuidado. Se alguém se habitua a isto ainda é capaz de ficar agarrado. Depois quer deixar e não consegue. De vez em quando ainda vá. Que até ajuda a aliviar. Mas José gostava de falar nestas coisas. Por razões semelhantes, ao que parece, daquelas que afastavam Maria destas coisas. Tinha crescido num mundo onde a política não era tanto o fazê-la como o desfazê-la, com espírito mais ou menos crítico e paixão mais ou menos revolucionária, que o país que é o nosso, e que é o de José, não é muito dado a estas coisas, referimo-nos à crítica e à revolução, que espírito sempre foi havendo, mais não fosse o do vinho, e paixão também, nem que seja apenas a do futebol. Nesse mundo também a religião não tinha escapado às armas impiedosas da crítica. O sexo não estava tão presente, antes pelo contrário. Se revolução havia a fazer, e parece que sim, não era para começarem todas e todos aí a foder com este e com aquele ou com aquela e com esta. Era o que faltava é que isto passasse a ser o da Joana, com o perdão da Joana que não deve ter culpa de nada, e já ninguém conhecesse os limites e as obrigações dos seus direitos e dos seus deveres sexuais. Mas este alheamento do sexo, se talvez tivesse contribuído para não lhe abrir por demais o apetite, sorte a tua Maria senão era um ver se te comia, o certo é que lhe despertou, se assim pode ser dito, um interesse intelectual pela coisa. Mas não a Maria. Para Maria o sexo era uma coisa que acontecia naturalmente dentro do casamento, de preferência católico, apostólico e romano, e que entre outros efeitos agradáveis tinha esse de poder gerar uma criança, e quem é que não gosta de crianças, só quem não tem coração. Com a política e a religião tinha acontecido o contrário do que acontecera com o José. Maria tinha crescido num ambiente apolitizado. Quem quiser imaginar um cenário semelhante não precisa de ir longe, basta olhar em volta, e só com grande azar, ou inusitada sorte, encontrará diferente cenário. Não se discutia política. Nem sequer se falava dela. Isso era lá com eles. Com os que a faziam. A nós o dia-a-dia já dava bastante que fazer. E que falar. De religião falava-se, mas sempre de acordo com as sagradas escrituras, ou se desvio havia, não era com intenção, e assim que era percebido, logo era natural e piedosamente emendado. Estas coisas da religião, na verdade, não são para brincadeiras. Não porque toquem o íntimo e o secreto de todos nós, mas porque metem medo como um filme de terror. Imaginai-vos a vós, se a imaginação humana a tanto chega, condenados a uma eternidade de sofrimento e de gritos e de choro, a arder para todo o sempre, sem perdão nem salvação, algures num qualquer compartimento do Inferno, assim com letra grande, que infernos como sabemos há muitos, e não convém, ao que dizem, confundir este com os outros. Não há nada como o medo para submeter uma alma, tal como não há nada como a fome para dominar um estômago. Mas agora adiante, que o José e a Maria já estão mais ou menos apresentados, ao menos dentro dos limites do que aqui nos interessa, que isto nunca ninguém conhece ninguém de forma clara e definitiva, e por vezes há surpresas, nem a si próprio ninguém se conhece verdadeiramente, e quem imagina que sim ou se ilude ou de si não conhece quase nada.

Não se sabe ao certo se o amor que José agora nutria pelas suas três amantes era coisa que já vinha de longe ou se a paixão tinha sido aguçada pela resistência de Maria em falar nelas. Tenho uma relação intelectual extra-conjugal, disse o José um dia a um amigo. Tens uma amante, é isso, perguntou o amigo. Uma não, três, esclareceu o José. Sorte a tua, disse o amigo, quem me dera a mim. São amantes intelectuais, acrescentou o José. Então fica tu com elas, concluiu o amigo. E o José ficava com elas. Dormia com elas quase todas as noites. Menos aquelas que dormia, ou melhor não dormia, com Maria. Havia um calendário. Ela assim tinha decidido. Isto não convém abusar. Já viste se somos apanhados pela fúria dos sentidos. A José, tal fúria também não interessava. Quando Maria estava de folga, entretinha-se com pornografia. Isso até lhe dava umas ideias que nos dias reservados ao uso da coisa tentava pôr em prática. Mas Maria era relutante. Um dia, José propôs-lhe que tentassem a coisa a três. Maria a princípio disse que sim, que estava bem, que podia ser tudo o que ele quisesse, mas depois esclareceu que aquelas declarações tinham sido feitas a quente, mais especificamente durante o acto, e que ela estava fora de si, nem sabia o que dizia, só queria é que ele não parasse, e ele tinha ameaçado que se ela não quisesse a três ele deixaria ali mesmo de querer a dois, ao menos com ela. Podia ser com a tua amiga, arriscou o José, a Joana, ou lá como é que ela se chama, maluca para isso era ela, ao menos parecia, mas também se podia pagar a uma profissional do sexo, e essa até podia trazer companhia, era só escolher e pagar, não custava nada, maneira de dizer, alguma coisa havia de custar, mas gasta-se dinheiro em tanta coisa mal gasto, que gastá-lo assim era só mais uma forma de o aproveitar, melhor ou pior. Ela cortou o assunto abruptamente. Não sejas parvo, tenho mais em que pensar e mais que fazer. Não que José quisesse muito ter outra mulher na cama. Mas a conversa agradava-lhe. A Maria, não. Por isso levantou-se da cama e fechou-se na casa de banho, batendo a porta com força. José ficou a pensar que devia tentar falar de política e de religião durante o acto, assim a quente, quando ela menos esperasse, como quem espeta um ferro no dorso ensanguentado de um touro enraivecido. Não pares agora que estou quase a vir-me, imploraria Maria. Fode-me toda, diria ele como quem lembra a uma actriz distraída o que deve dizer a seguir. Sim, pois, isso, fode-me toda, gritaria ela. E ele, enquanto o ferro ia e vinha e a tourada estava no auge, lá diria, como quem não quer a coisa: Então o cabrão do Cavaco lá ganhou esta merda!

Do outro lado do espelho


Magritte, La Reproduction interdite.

Questões irrelevantes I

A escrita tem sexo?

Reformulo, para não dar lugar a equívocos:

A escrita tem género?

Quero dizer, há uma escrita masculina e uma escrita feminina?

O princípio da incerteza

Tentas. Voltas a tentar. Tentas outra vez. Desistes e regressas. Escreves, riscas, rasgas, apagas, reescreves. Juntas, separas, voltas a juntar. Esperas, avanças, recuas, voltas a avançar. Finges, mentes, denuncias-te, revelas, escondes, mostras, corriges, voltas a errar. Matas, morres, ressuscitas, dás a vida, tiras, voltas a dar. Devolves um sorriso, guardas, choras, gritas, calas-te, voltas a gritar. Falas, gesticulas, hesitas, mordes, provas, vomitas, voltas a desejar. Misturas, separas, agitas, tomas, remendas, vestes, despes, trocas, voltas a vestir. Compras, vendes, dás, voltas a tirar. Juras, afirmas, negas, voltas a jurar. Sobes, desces, escorregas, cais, levantas-te, voltas a cair. Ris, choras, consolas, esperas, desesperas, voltas a rir, voltas a chorar. Sujas, limpas, manchas, lavas, voltas a sujar.

Incertos são os caminhos e quem os percorre.

From cultural wars to cultural whores


Há poucos dias vi num desses templos de consumismo da cultura ocidental, duas mulheres muçulmanas, com o rosto completamente coberto, apenas com os olhos à vista, provavelmente para não irem contra às montras. Eu bem sei que vivo no ocidente, na era da pós-modernidade e do laissez-faire demo-liberal, mas mentiria se dissesse que me foi indiferente aquilo que vi, ou que senti uma vontade tremenda, de que muito me orgulho, de ser culturalmente tolerante.

A tolerância tem hoje dois discursos que a defendem ou julgam defender. O primeiro diz-nos que a superioridade do ocidente reside na sua capacidade de tolerância e, nesse caso, estas duas mulheres de véu, estariam a usufruir da liberdade ocidental e da nossa infinita capacidade de tolerância, o outro discurso, o da tolerância pós-moderna, recusa a ideia de superioridade cultural seja de quem for, e delicia-se com estas senhoras de véu, porque elas são a marca da multiplicidade e da diversidade. Claro que ambos estes discursos são falsos porque se baseiam em dois equívocos. O primeiro imagina que a cultura ocidental não precisa de se defender das outras culturas e que a nossa superioridade não foi ela própria, e ainda bem que o foi, um exercício autoritário de arrogância cultural. O segundo parte do princípio, igualmente erróneo, que as culturas são todas iguais e que se as mulheres, por exemplo, no ocidente, acharam que descobriram a salvação no clítoris, outras mulheres de outras culturas, têm todo o direito de deixar e querer que o mesmo lhes seja retirado. A estupidez cultural é universal, e ser pós-moderno é sabê-lo e ser feliz. Se no ocidente as mulheres podem usar meias de renda, cuequinha fio dental, decotes pronunciados, calças justas, cabelo vermelho, piercing no nariz, tatuagem no peito, porque raio não podem as mulheres muçulmanas usar véu, e cobrir o rosto, para além de todo o corpo, e o cabelo, e nunca consegui perceber porque não cobrem as mãos, essas pecaminosas e sedutoras agentes do toque e da perdição. O que distingue realmente a cultura ocidental das outras culturas, se alguma coisa a distingue, e se não queremos cair na falácia do relativismo pós-moderno, é a capacidade do indivíduo se colocar acima, dentro do possível evidentemente, e sempre correndo o risco da ilusão, da sua cultura. O que distingue a cultura ocidental é o sentido crítico, o facto de ter sido aqui que se criou a ideia de crítica cultural, e portanto de progresso e, se quisermos, de recusa de si próprio. É essa recusa de si próprio, essa busca da superação e da emancipação que criou a singularidade ocidental. Numa palavra, a liberdade. Mas não uma liberdade neutra, como a que hoje se cultiva, defende, e se tenta fazer passar como a única liberdade possível e desejável. Não, não essa, mas uma liberdade emancipativa e igualitária. É esta palavra, hoje tão fora de moda, a emancipação, que estraga tudo, que borra a pintura pós-moderna.

Aquelas mulheres de véu não são apenas a presença entre nós da diversidade cultural (ou são-no quando mandamos às urtigas, como fazemos hoje, as ideias de emancipação e de igualdade, ficando apenas com um vago mito de liberdade, desfigurado, falso e criminoso), aquelas mulheres são a defesa e a exaltação, in the flesh, de uma cultura de opressão e de silenciamento das mulheres e da sua sexualidade, da sua liberdade, do seu direito de se reinventarem, de não seguirem a norma, de não serem apenas o que delas se espera e quer, de poderem escolher por si próprias. Aquelas mulheres são um manifesto político de carne e osso contra a emancipação cultural e a liberdade, contra o direito à diferença e contra a diversidade, que na sua patética ingenuidade, alguns imaginam que elas simbolizam. Aquelas mulheres são para mim uma ofensa cultural, contra à qual eu quero ter o direito a ser protegido e são a negação de uma cultura, a minha, que eu quero que tenha o direito de se defender. Claro que precisamos de diálogo cultural, claro que precisamos de intercâmbio, claro que precisamos de compreensão, claro que precisamos de conhecimento mútuo e claro que precisamos de respeito. Mas isso não nos deve levar a ter que aceitar passivamente aquilo que viola e ofende a nossa dignidade e a nossa liberdade. Todas as sociedades são etnocêntricas. O ocidente não é excepção. Mas não queiramos abolir em absoluto o nosso direito ao etnocentrismo. O ocidente só terá alguma coisa a oferecer ao mundo se se afirmar como um projecto cultural de liberdade, igualdade e emancipação. E emancipação, o que implica a luta contra a ignorância, contra a opressão, contra a exploração, essa tríade sagrada que, entre outras não menos maléficas criações, inventou o véu.

Olá.

Any Color You Like

Miami vices

A comunidade cubana exilada em Miami - vítima da terrível, sanguinária, criminosa, indescritível ditadura do monstruoso ditador “Fidel, O Castro”, famoso por castrar criancinhas ao pequeno almoço - prepara as suas aguçadas facas de amor, e outras armas não menos vivificantes e salvíficas, para com elas invadir, perdão, regressar à ilha encantada, actualmente destroçada, destruída, incendiada e maltratada por esse terrível grupúsculo criminoso e terrorista que vem a ser, como é sabido, o Partido Comunista Cubano. Há alegria nos lábios, esperança nos olhos, vigor nas mãos, dos pobres e miseráveis deserdados da sua ilha de sonho, condenados a viver na mui distante e infradesenvolvida Miami, tudo porque o cabrão de um barbudo, e mais o outro da bóina, e não sei quem mais, decidiram acabar com a luminosa ditadura, passe a expressão pouco adequada a tão glorioso regime, do nunca por demais louvado rei "Fulgêncio, O Baptista", famoso por baptizar criancinhas ao pequeno almoço. Alegria, esperança e vigor que foram acesos graças ao internamento do velho senhor que vai ser operado, ao que parece, certamente recorrendo aos serviços dos médicos e dos serviços de saúde do glorioso Reino Unido da América do Norte, que em Cuba, como é sabido, nada disso existe; nem médicos, nem hospitais, nem centros de saúde, nem nada que não seja fome e miséria e ditadura e sangue e morte. A alegria é tão difusa, a esperança tão presente e o vigor tão vivo que até as crianças, que delas é - ou devia ser, ou alguém disse que era, talvez sem saber bem o que dizia, ou dizendo mais o que desejava do que o que era, fora ou seria - o reino dos céus, que o da terra, esse, parece não poder mesmo ser, mas essas crianças, nas quais já brilha a alegria, já cintila a esperança e já emerge o vigor, sempre vão dizendo dessa alegria, dessa esperança e desse vigor, como uma que agora fala, em directo de Miami, pobre coitada que não pôde crescer na ilha da alegria e teve que crescer na terra do Rei Ignorush, diz a criança, sorriso nos lábios, acompanhada por sua mãe, que sorri como ela, mas parece temer que o miúdo ponha a pata na poça, como se usa dizer, e deite por terra os nossos maravilhosos planos, diz a criança que a mãe, afinal, não quer bem voltar a Cuba - a não ser talvez, mas este acrescento é nosso, dele não é responsável a inocente criança, a não ser talvez quando todas as coisas se tiverem completado e Cuba mais não seja, nem possa ser, nem queira ser do que uma magnífica e esplendorosa colónia de férias do Império Roméricano. – Mas enquanto esse dia não chega, o seu objectivo não é voltar a Cuba, esclarece a criança, mas o de abrir por lá, quando houver finalmente liberdade, e cada um puder tratar dos seus negócios, e seguir o seu natural interesse próprio, e expressar as suas ideias, e vender as suas coisas, e etc e tal e mais não sei o quê, nesse dia primeiro, em que Cuba caminhará finalmente para a liberdade e a democracia e o mercado e essas coisas todas, nesse dia a minha mamã não voltará a Cuba, mas gostava muito de abrir por lá um restaurante McDonalds. Amén!

Areia para os olhos

Israel e Líbano dão versões opostas sobre massacre em Qana

- Ok. Não percebo. Mas quem é que matou as crianças afinal?
- Pá, eles põem crianças à frente, estás a ver? Utilizam-nas como escudo humano, percebes? Quem matou as crianças foram os gajos. O Hezbolas. Israel não tem culpa nenhuma, estás a ver?
- Não estou a ver lá muito bem. Mas espera aí. Vamos assim tipo a um exemplo.
- Pode ser. Eu curto dos exemplos. Manda vir.
- Então, vá lá, concentra-te. Imagina um assassino. Um gajo inqualificável…
- Um gajo quê?
- É pá, um grande cabrão, um grande filho da puta, um criminoso de merda, um gajo que já matou mais gente do que os teus dedos das mãos, uma criatura nojenta.
- Chumbo nesse cabrão!
- Pois, é aí que eu quero chegar. Agora imagina que o gajo raptou uma criança.
- Filho da puta!
- Estás a acompanhar?
- Continua…
- O gajo raptou uma criança. É pá, o gajo é um assassino. O gajo está-se nas tintas para a vida do puto. Agora o gajo ameaça que mata o puto se alguém tenta alguma coisa contra o gajo. O que é que fazemos?
- Estoiramos os miolos ao cabrão!
- Foda-se, pá! O gajo disse que matava o puto!
- Então o que é que fazemos? Não podemos ficar só a olhar.
- Podemos tentar negociar com o gajo.
- Eu não negoceio com filhos da puta!
- Mas o gajo tem a criança. Agora imagina que ele põe a criança à frente dele, que a usa como escudo humano, que para matares o cabrão, tens que matar a criança. O que é que fazes?
- É pá eu mato o filho da puta!
- Mas matas a criança?
- Calma aí. Tu não me atires areia para os olhos! Quem matou a criança foi o gajo. O gajo é que a usou como escudo humano. Eu só queria matar o grande filho da puta. É culpa minha que ele tenha lá posto a criança? Vai mas é para o caralho mais os teus exemplos.

Da suposta dicotomia entre o corpo e a alma

Ela vive dentro do seu corpo. Diz que é por ele e com ele que contacta com o mundo. Que o corpo é uma flor, cheio de tecidos secretos e ambivalências. Que um dia um corpo há-de nascer do seu corpo. Consegues imaginar? Um corpo a nascer de outro corpo. Um corpo a viver dentro de outro corpo. Um corpo que é já outro corpo dentro do corpo que dentro do corpo é já corpo. O seu sexo é um segredo interno. Curva-se e recurva-se para dentro. Dentro de mim entra o corpo que já é corpo de outro corpo. Ela ouve, vê e sente com o corpo. Até pensa com o corpo. O corpo é cérebro multidimensional. Não uma máquina comandada por uma mente. Tudo é já corpo e saber e sentir e amar. Não há como sair do corpo a não ser no corpo de outro corpo. Ou como entrar no corpo sem que outro corpo ocupe o que do corpo se abre para que no corpo se entre.

Ele vive dentro da sua mente. Diz que as ideias lhe alimentam o desejo. Que as portas são todas mentais. Lê livros sobre o cérebro e os seus mistérios. Mas é a mente que procura. De dentro do que pensa e do que sente. Ele toca dimensões secretas, segredos insondáveis, mistérios primordiais. Já se sentiu planar. Ou não estar no sítio onde está. Um dia as ideias gerarão outras ideias numa torrente infinita de palavras, cores, imagens, luzes, espanto e desconcerto mais ou menos psicadélico. O corpo é uma transposição da mente. Foi no vazio do silêncio que tudo começou. Nele despontou a primeira palavra como uma flor no deserto. Precisas de um pouco de água para não morreres no escuro.

Ela estuda as estruturas sinópticas da pele. Passa a mão devagar pela suavidade corporal da sua vida. Conduz o espasmo e o grito na materialidade concreta do momento. Apela aos sentidos que lhe abrem caminhos sempre novos. O que vejo, o que cheiro, o que toco, o que saboreio, o que ouço, atravessa-me o corpo e dentro consubstancializa-se naquilo que sou.

Ele diz que há um sexto sentido. Que se perde por dentro da mente. Não sabe bem explicar. Nisso é como ela. Mas ela tem um corpo para ofertar. Ele diz que o vazio é como o cansaço que fica depois do prazer. Não se pode bem definir. Ou talvez seja uma variante da possessão. Exorcismo estranho de si próprio. Já imaginaste circuitos abstractos de ideias, sendo ainda parte de nós, mas inventando já outra dimensão? Também aí somos o que fomos e seremos.

Ela abre a mão e diz toca-me

Ele fecha-lhe os olhos e diz imagina-me

O nosso homem na Madeira


Alberto João Jardim é o nosso Fidel Castro.

É claro que Alberto João Jardim não ia gostar nada da comparação. E é verdade que ela é abusiva, e mesmo ofensiva. Para Fidel Castro, evidentemente.

Doroteia ou Alice ao contrário

Doroteia começava a sentir-se farta de estar sentada à beira-rio com o irmão, sem nada para fazer, a não ser mastigar uma broa que trouxera de casa e que estava tão saborosa que Doroteia tentava fazê-la durar o máximo de tempo possível. Espreitara uma ou outra vez para o livro que o irmão estava a ver, mas só tinha gravuras, não tinha palavras. “E de que serve um livro”, pensou Doroteia, “que não tem palavras?”

Pensava para si própria se valeria o esforço levantar-se e fazer um colar de malmequeres. Foi então que, de repente, um coelho cor-de-rosa com os olhos brancos passou a correr ao lado dela. Parou um pouco adiante, tirou o relógio do bolso do casaco e depois de ter olhado para ele, bateu com ele várias vezes no seu joelho, exclamando: “Que vida a minha! Esta merda está sempre avariada! O feiticeiro é bem capaz de ficar zangado se eu me atraso.”

O coelho voltou-se para trás e viu Doroteia. Aproximou-se e perguntou-lhe as horas. Doroteia não ficou muito surpreendida por ouvir um coelho falar. Estava mais intrigada com a cor do bicho, pois nunca antes tinha visto um coelho cor-de-rosa. Pensou para si própria que ele ficaria bem numa parada gay, e não conseguiu evitar uma pequena gargalhada. O coelho não ligou ao riso de Doroteia. Estava demasiado envolvido pelo verde dos seus olhos. É que bem vêem, quando se tem olhos brancos, quaisquer olhos nos conseguem impressionar, desde o vulgar castanho até ao esplendoroso azul.

O coelho, sem conseguir tirar os olhos dos olhos de Doroteia, perguntou-lhe o nome. Doroteia ficou a pensar durante algum tempo. Não gostava lá muito do seu nome. Por fim respondeu, sorrindo:

- Alice.

Sexualidade e direitos de personalidade

As religiões nunca deram grande destaque à mulher. Nunca a trataram da mesma forma que tratam os homens. Eva é a companheira de Adão, mas Adão é mais do que apenas o companheiro de Eva.

Siddhartha de hermann Hesse é talvez um bom exemplo. Porque procura ser um livro religioso no sentido profundo da expressão. Pouco ou nada as mulheres existem nesse livro. Só uma merece lugar de destaque: Kamala. Mas esse é um lugar estritamente ligado à sexualidade. Kamala é mestra na arte do prazer e do uso sensual dos sentido. Esse é o seu domínio, o seu ofício. E Kamala dificilmente ultrapassa os limites desse seu território. É verdade que mais tarde procurará Buda, coisa que pensará fazer ainda jovem, mas que só fará quando a idade pesar e a sua boca vermelha e viva, comparável a um figo maduro, se tornar apagada e envelhecida. De certa forma é este o lugar que o cristianismo dá à mulher. E fica a sensação, que apesar de tudo, o cristianismo ainda foi das religiões que mais destaque deu à mulher e à sua personalidade. É certo que o fez anulando a sua sexualidade. Como se a mulher só pudesse ser pessoa para além ou aquém do seu sexo, o que acaba por ser uma forma de legitimar a redução da mulher à sexualidade. O teu sexo tira-te a personalidade, a tua personalidade tira-te o teu sexo. E, no entanto, uma pessoa, e isto o cristianismo parece ter compreendido, só é verdadeiramente respeitada enquanto tal se as suas relações intersubjectivas passarem pela sua personalidade, pela sua pessoa total, e não apenas por este ou aquele aspecto dela. Kamala, neste sentido, não pode ser verdadeiramente respeitada. E é em grande medida por isso que Siddhartha não a consegue amar verdadeiramente, tal como ela não consegue amar ninguém. E é só quando mais tarde se reencontram, quando Kamala, já envelhecida, parte para ver Buda morrer, levando consigo o filho, que sem o saber Siddhartha lhe tinha feito, é apenas nessa altura, quando reencontra Siddhartha, quando este a reconhece, a ela que vem mordida por uma cobra e que vai morrer brevemente, e quando reconhece o seu filho, é nessa altura que alguma coisa do que poderíamos chamar amor acontece. Mas nesta altura Kamala já não é quem era, não é a cortesã mas a mãe, não é a jovem sensual e provocadora, mas a mulher envelhecida e quase assexuada. Kamala só é verdadeiramente respeitada e só toca o amor quando perde a sua sexualidade, só nessa altura se torna verdadeiramente uma pessoa. Não é difícil perceber que estamos aqui no seio do drama, tão bem representado pelo cristianismo, da santa e da puta. A puta seria pura sexualidade sem personalidade, enquanto a santa é uma mulher finalmente com plenos direitos de personalidade, mas amputada da sua sexualidade. Enquanto Kamala é a mestra do prazer, é apenas a esse nível que é tratada, mas só quando perde o seus trunfos e se torna mãe (a maternidade aparecendo como uma forma de sublimar a sexualidade, ou seja, de reduzir a sexualidade à reprodução, princípio que o cristianismo irá defender como forma de divinizar o uso do sexo) é que finalmente adquire personalidade.

Ora a resolução e superação desta contradição seria aquilo para que deveria apontar o discurso de emancipação da mulher. O que é a emancipação da mulher? Para responder em poucas palavras, ela outra coisa não deveria ser do que a posse pela mulher de todos os seus direitos de personalidade. A mulher, como aliás o homem, devem ser tratados sempre e em qualquer situação como pessoas, como personalidades totais e não parciais. O cristianismo em grande medida tentou apontar para aí, é também talvez por isso que o seu fracasso nos parece hoje quase absoluto. E isto porque o cristianismo apontou para esse caminho amputando a mulher da sexualidade. A filha, virgem, a esposa, propriedade sexual de um marido com um direito de uso limitado à reprodução, a mãe. Ou então a santa, e a ausência total de sexualidade, a castidade. Mas o que é preciso entender é que esta forma de limitar a sexualidade permitiu à mulher ganhar direitos de personalidade. A boa filha e a boa esposa, a mãe e a santa passam a ser mais respeitáveis socialmente do que as mulheres que são vistas apenas como sexualidade, a prostituta, a devassa, a infiel. Como sair daqui? Uma das respostas, vinda de um feminismo aparentemente mais radical, mas no fundo mais ingénuo, e hoje outra vez na moda, tende a entender como caminho da libertação da mulher a inversão radical desta utopia cristã. A mulher definida enquanto género, enquanto sexualidade, enquanto corpo. É um discurso fácil e atraente, não admira pois o seu sucesso, além de ser politicamente inócuo. É um discurso que se centra em questões de género – o que é ser homem?, o que é ser mulher? – e não em questões sociais e politicas. Um discurso que parece acreditar, ou ao menos querer fazer acreditar, que as mulheres se libertam pela sexualidade, essa mesma que foi usada como forma de subjugação da mulher: tu és sexo, e serás apenas sexo. O homem é também sexo, mas é sempre mais do que isso. E provavelmente esta nova redução da mulher à sexualidade é uma forma tão eficaz de a desqualificar enquanto pessoa como o foi ao longo de tanto tempo a castração da sua sexualidade.

Alice III

I
Não sabemos nada, Alice, não sabemos nada sobre o essencial. Somos criaturas tacteantes. Pouco vemos e pouco compreendemos. Pouco sabemos. Pouco somos. Ao menos durante esse breve suspiro que imaginamos ser a nossa vida e que vai do nascimento à morte, o que quer que seja, tenha sido ou venha a ser isso a que chamamos nascer viver morrer. O ser lançado no mundo. É isso que somos. Um fósforo rasgado contra as trevas. Uma réstia de luz. Um abrigo para a esperança. É isso que somos. O pouco transformado em muito, transbordante de si, o muito reduzido a nada, o nada reinventado de cinzas. É isso que somos. É isso que sempre fomos e seremos. A respiração de Deus. É talvez isso a vida e nada mais. A respiração de Deus. Somos como o vento que sopra e que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai. Somos o tempo que passa e que regressa sempre. Que estando nunca está e que não estando nunca deixa de estar. Somos frágeis, transitórios e incertos como a memória. Inseguros como a saudade. Misteriosos como a noite. Estranhos como a vida. Somos mãos abertas e estendidas. Somos cabelos soltos. Somos corpos habitados por fantasmas. Somos o que fica do que passa e o que passa do que fica. Somos tudo e não somos nada. somos feitos de luz e de sombra. Somos um equilíbrio de contrários. Uma dialéctica de opostos. Que afinal são o mesmo. Com outro rosto. Outra forma. Outra configuração. Mas tudo parte do mesmo ser. Sem limites definidos. Tocando-se, penetrando-se, fecundando-se. Como o masculino e o feminino. Como o espaço e o tempo. Como o ying e o yang. Como o quente e o frio. Como o pesado e o leve. Como o forte e o fraco. Como a razão e a loucura. Como a vida e a morte. Como a alegria e a tristeza. Como eu. Como tu. Como nós.

II
Alice, para lá do horizonte esconde-se aquilo que os olhos não podem ver, as mãos não alcançam, a mente não imagina. Para lá do horizonte esconde-se o sentido da esperança, o destino da procura, o conhecimento desconhecido. Para lá do horizonte está tudo aquilo que tu és e que eu sou. Para lá do horizonte está o que nos completa. Para lá do horizonte estamos nós. Para lá do horizonte está a verdade da ternura e o silêncio da felicidade. Para lá do horizonte estão os olhos que os olhos não podem ver, as mãos que as mãos não podem tocar, a mente que as mentes não sabem pensar. Para lá do horizonte está tudo o que não existe, o que não tem espaço nem tempo. O que vive dentro de nós e não sabemos. Tudo aquilo a que damos abrigo e nos ultrapassa. Para lá do horizonte desenha-se a história da eternidade. Para lá do horizonte estamos nós.

III
Olha para ti. Sabes o que vês? Vês Buda. Ouvi dizer que era assim. Inventámos tantas vidas para desarranjar o pesadelo. Mas nunca sabemos se despertamos. Sabes que Buda um dia ergueu uma flor? No silêncio do segredo revelado todos esperavam uma palavra. Só Mahakasyapa sorriu. Era o sorriso da esperança. Mas a nós ensinaram-nos o desespero. A puta de religião onde crescemos. Com as suas verdades esterilizadas. Puras como o vazio estéril de Maria. A mãe de um Deus eternizado numa cruz. A nossa pequena cultura da morte e da infelicidade. O peso infernal do passado, da memória, do pecado. Marcado na carne como a origem do mal. E caminhamos abismados por dentro de falsas ilusões. Quando Buda pegar na flor não te esqueças de sorrir. O amor é uma estrada onde aprendemos a tocar o íntimo.

Palavras alheias IV: Roger Waters


And the Germans kill the Jews
And the Jews kill the Arabs
And the Arabs kill the hostages
And that is the news
And is it any wonder that the monkey's confused
He said Mama Mama, the President's a fool
Why do I have to keep reading these technical manuals
And the joint chiefs of staff
And the brokers on Wall Street said
Don't make us laugh, you're a smart kid
Time is linear
Memory's a stranger
History is for fools
Man is a tool in the hands
Of the great God Almighty
And they gave him command of a nuclear submarine
Sent him back in search of the Garden of Eden

Can't you see
It all makes perfect sense
Expressed in dollars and cents,
Pounds, shillings and pence
Can't you see
It all makes perfect sense

(Roger Waters, Perfect Sense
in: Roger Waters, Amused to Death)

Fragmentos de blogs perdidos

Alguns textos que aqui (re)publico são fragmentos de blogs precocemente deletados, mas não é bem por “culpa” minha que os volto a publicar. Na verdade, não guardei nada. Apaguei tudo. Ou melhor, guardei uns quantos contos tridimensionais publicados no The Ghost in the machine (era um blog, para os menos informados), mas até esses acabei por perder. Foi-se tudo, com o vento. Quer dizer, deve ser sempre possível recuperar, que isto a informática, já se sabe: persegue-nos, despe-nos, escraviza-nos, controla-nos. Mas estes que agora (re)publico foram preservados pelo Google e pelo Blogger. Não por mim. Reencontrei-os quando me deu a saudade e fui procurar o impossível, reacender o que apaguei. E vai o google e devolve-me umas coisas da floresta (era outro blog, para os menos informados, outra vez), e vai o blogger e devolve-me a Alice. Desmembrada, é verdade. Aqui uma perna, ali um braço, acolá uma mão. Mas achei que a devia remembrar. Já que ainda continua por aqui, então vale mais voltar a dar-lhe forma. Razão tinha talvez o outro (quem leu o Margarita e o Mestre sabe a quem me refiro, e quem não leu ainda vai a tempo de ler) quando dizia que os manuscritos não ardem. Estes não arderam. Persistem. Então vale mais voltarem para aqui. Sem juízos nem prejuízos. Assim, tal como eram e continuam a ser. Mais coisa menos coisa. E prontos, como se diz por aí, então é assim.

Este texto não está lá muito bem escrito, mas esta é a silly season e está muito calor, um gajo quase não consegue pensar nem escrever, e também deve ser por isso que republico em vez de publicar. E também porque fui parvo e "assassino" e não sei que mais ao ter deletado aquilo tudo, e esta é a minha forma de pedir desculpa. I suppose.

Nota: Quem quiser experimentar é ir ao google e procurar por ex. trough the forest glade jctp, e depois carregar em cache, vão ver que a coisa abre. A Alice é irem aqui ao blogger e escrever por ex. Alice jctp, e vão ver que aparece texto desmembrado. Não vale a pena carregarem no link, não vão ter a lado nenhum. Mas se ainda se lembrarem de palavras e frases do blog, vão ver que, com trabalho e paciência, ainda recuperam muita coisa. Pondo um palavrão seguido de jctp é boa estratégia, uma vez que nesses blogs abusei deles.

Palavras alheias III: Aimee Mann

I'll tell you a secret I don't even know
(Aimee Mann)

Alice II

I
Alice nasceu num dia de Primavera. A sua mãe abriu as pernas e Alice saiu da toca. A sua mãe estava habituada a abrir as pernas. Por motivos profissionais. Mas era a primeira vez que as abria para gerar vida. Por incrível que pareça, Alice tinha um pai e este estava identificado. Era quem geria o negócio da mãe. Quando Alice nasceu o sol brilhava e a natureza estava em flor. A mãe quando a contemplou pela primeira vez disse que ela era bonita. E o pai, olho no negócio, disse que era verdade, que a miúda tinha futuro. Era preciso era cuidado, para não a danificar. Usar sim, que é direito que assiste a quem educa, mas abusar não. Alice foi gerada por acidente. Nunca ficou muito bem esclarecido como, mas o certo é que escapou àquele que seria o seu destino natural: o aborto. os pais de Alice, sabe-se lá porque milagre, perderam a cabeça e decidiram que o acidente iria até ao fim. A mãe, claro, ficou feliz como todas as mamãs. Não deixou de fumar nem de beber. E enquanto pôde continuou a trabalhar, que a vida não está para brincadeiras e luxos é para quem pode, não para quem fode, como modo de ganhar a vida. O pai rezou todos os dias para que o acidente fosse menina. Forma de ampliar o negócio familiar. E para que Alice se habituasse de cedo ao seu futuro começou logo a chamar-lhe puta precocemente. Mimos de pai babado. Quem o poderá censurar? Alice não se pode queixar. Tem um papá e uma mamã. Nem todas as crianças podem dizer o mesmo. Que algumas nem família têm. Alice teve amor e um lar onde pôde crescer e ser feliz. É verdade que caiu muitas vezes, foi contra as portas, danificou o seu corpo de criança. Mas a senhora doutora, que estudou na universidade e não se deixa enganar, sabe bem que das escoriações no corpo de Alice a porta está inocente. Tudo isto é fruto do amor paternal e maternal. Mais od paternal do que do maternal, é certo. Mas apenas porque o pai tem a mão mais pesada e melhor pontaria do que a mãe. Raio da miúda é endiabrada e consegue fugir das ternurentas investidas da mamã. Mas do papá ninguém escapa. Nem mesmo a mamã que de vez em quando também leva pela medida certa, maneira outra de dizer que recebe o que merece, Mas com a mamã é preciso mais cuidado. Usar de menos ternura. Não vá o negócio ressentir-se. Alice, por enquanto, ainda é um investimento a médio prazo. Mas com a idade é preciso reduzir na ternura. As crianças, mesmo as muito amadas, não devem ser mimadas. E quando a mulher começar a florir (linda metáfora para a filha da Primavera) é porque está na altura certa para começar. Entretanto vai aprendendo com o papá. Que amorosamente tudo ensina à sua filha querida.
II
Esta é a casa do fantasma. Aqui não podes ficar muito tempo. Aqui só ele habita. Mais ninguém. Podes vir sempre que quiseres. Ficar o tempo que for necessário. Mas não deves abusar. Não é bom andar na companhia dos fantasmas. Eles não sabem o que fazem nem compreendem o que fizeram. Julgam-se inocentes, livres, perdoados. Imaginam que agora tudo acabou. Que tudo sarou. Que o que foi deixou de ser e que o presente nada guardou do passado. Os fantasmas nunca se arrependem. Acham que não vale a pena. Que já não é necessário. Que o esquecimento já apagou tudo. Mas esta é a casa do fantasma. Aqui tu ouves vozes. Vês sombras de outros tempos. E tens medo. Aqui tu temes a hora da chegada do pai. Aqui tu temes as palavras doces. Aqui tu temes a mão que te sobe pelas pernas. Aqui tu temes as mentiras do amor. Aqui tu temes a violação original. Aqui tu temes o corpo, o sangue, a vida. Aqui tu temes tudo porque tudo te foi tirado. Porque nada é o que parece e tudo parece o que não é. Aqui a vida não abençoa a vida. E o futuro rasga o passado deixando marcas indeléveis de dor e sofrimento. Aqui a fenda sagrada transforma-se em cicatriz. Aqui o sangue escorre e a inocência agoniza. O perdão é uma coisa. O esquecimento é outra. E os fantasmas julgam que se pode esquecer sem perdoar. Lá no mundo sem corpo em que vivem não entendem estas marcas que deixaram. Estes espinhos cravados na carne tenra. Esta morte sem remissão. Os fantasmas não sabem nada. Não podem saber. Nem do mal que fizeram nem do bem que poderiam ter feito. Os fantasmas não existem nem possuem realidade. Mas isto que tu sentes invadir-te o corpo. Isto que rasga, maltrata, destrói. Isto que um dia aprenderias ser afinal objecto de prazer. Isto existe demasiado. Cravou-se dentro de ti e já não há forma de o expulsar. A não ser quando ficas assim. Sozinha. Olhando o vazio. Então alguma coisa se dissolve dentro de ti. E inunda-te. É um jorro quente que um dia tentarão te convencer que é o elixir da vida. Seria para rir, se não fosse para chorar.

Não me toques
Não me toques
Não me toques
Não me toques
Alice
Alice
Alice
Alice
Alice
A
l
i
c
e
III
Mas que merda é esta? Quem te dá o direito de fazeres isto? De me expores, de escreveres sobre mim, de me apresentares como produto da tua imaginação? Com que direito o fazes? Gostavas que fizesse o mesmo contigo? Seria bonito, não seria? Para variar. Conheço-te bem. Escreves para fugir. Escreves para te esconder. Escreves para fingir. Mas eu não tenho nada a ver com isso. Quero lá saber dos problemas que tens na cabeça. Quero lá saber se precisas disto como quem precisa de uma droga. Não tens o direito de me usar. Não tens o direito de fazer isso. Escreve sobre ti. Bem sei que há pouco a dizer, não é? A tua vida, no fundo, não tem interesse nenhum. Nunca teve. Mas a culpa é tua. Nâo me puxes a mim para o teu naufrágio. Para as tuas angústias de bolso e para os teus medos patéticos. Eu não tenho que aturar isso. Não tenho que fazer parte do jogo. Estou cansada da puta da tristeza. Dos lamentos de merda. Das pessoas que se arrastam e se lastimam. Sim, falo de ti. Sabe bem ser exposto, não sabe? Mas expor os outros não te dá problemas. Alice isto, Alice aquilo. Alice nasceu assim e vive assado. Deixa-me em paz. estou farta desta merda toda. E não, não penses que vou chorar. Seria uma vitória para ti, não seria? O teu silêncio levar-me às lágrimas. Obrigar-me a cair nos teus braços. Soluçar. Dizer que estou perdida. Implorar-te ajuda. Puta que te pariu! É prazer que não te darei. Disso podes ter a certeza. Sou mais forte do que tu. Sempre fui e sempre serei. Não preciso de ti para nada. O fraco aqui és tu. E por isso escreves da forma que escreves. Afundas-te nesse aquário redondo que tu próprio criaste e onde imaginas estar preso. Delirante. É isso que és. Ou apenas amedrontado. Deve ser isso. Delirante é muito para ti, não é? Sem querer ainda te fazia um elogio. Olha a tua sorte. Estou farta de pessoas que só se queixam. Que não fazem nada e dizem que está tudo mal. Farta do conforto do bláblá. Conforto sim, é sempre conforto. uma boa desculpa, o faz de conta, o talvez, pois, bem, não sei. Que se foda esta merda toda. Ainda por cima estou a escrever. Raio de doença. Deve pegar-se. Como uma epedimia. Ao menos não uso floreados, nem imagens poéticas, nem truques literários, nem essa patranhada toda com a qual iludimos a verdade e fazemos de conta que ainda há salvação. Mas não há, ouviste? Não há. Esta merda está toda fodida e já não há como sair daqui.